Sem direitos e auxílio emergencial, trabalho doméstico perde 1,5 milhão de vagas
Coronavírus CTB Geral 12/02/2021
“Empregada doméstica que presta serviço em residência está sendo obrigada a trabalhar, mesmo com ambos os patrões (homem e mulher) terem (sic) sintomas para COVID-19 e o exame clínico para atestar a doença ter atestado positivo”, Brasília (DF).“A referida senhora também compartilha máscara com sua empregada doméstica quando determina que saia da residência para cumprir alguma ordem”, Cachoeiro do Itapemirim (ES). “A trabalhadora relatou estar há 100 dias trabalhando diretamente, desde o isolamento social decorrente da pandemia. Ela é empregada doméstica e mora no local de trabalho, foi contratada para ser babá, porém, há meses acumula as funções de cozinheira, sem acréscimo salarial. Ela não tem folga em domingos e feriados, trabalha ininterruptamente e, apesar de ter passagens compradas para visitar a família em Belém, desde março, a patroa não a libera. Além disso, inexiste recolhimento regular das contribuições sociais e do FGTS. A trabalhadora não tem parentes em São Paulo e necessita ver os pais na cidade de origem”, São Paulo (SP)
Acessadas pela Gênero e Número via Lei de Acesso à Informação (LAI), para o estudo “Cenários e possibilidades da pandemia desigual em gênero e raça no Brasil”, em parceria com o Instituto Ibirapitanga, denúncias enviadas ao Ministério Público do Trabalho nos cinco primeiros meses da pandemia de Covid-19 no Brasil ilustram abusos e violações cometidas contra trabalhadoras domésticas, privadas do direito à quarentena e consideradas “essenciais”, seja por decreto estadual, como ocorreu no estado do Pará, seja pela vontade de empregadores.
Como outras comoções causadas por tragédias no Brasil, as mortes emblemáticas de Cleonice Gonçalves, de 63 anos, primeira vítima da Covid-19 no estado do Rio de Janeiro, infectada pelos patrões que haviam chegado da Itália, e de Miguel Otávio Santana da Silva, deixado sozinho no elevador pela empregadora de Mirtes Renata, no Recife (PE), não provocaram mudança alguma em uma da relações trabalhistas mais antigas e desiguais do país.
A classe reúne cerca de 6,2 milhões de pessoas, sendo que 93% são mulheres e, entre elas, 68% são negras, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar (Pnad) de 2018, do IBGE, a mais recente a compilar esses números.
Somente as 3,9 milhões de trabalhadoras negras domésticas do Brasil, como Cleonice e Mirtes Renata, representam mais que o triplo do total de caminhoneiros no país, recentemente incluídos pelo governo federal no grupo prioritário da vacinação contra coronavírus. De todas as categorias profissionais deste primeiro grupo, trabalhadores domésticos, aliás, são um grupo menor apenas que os profissionais de saúde, que compreendem 6,6 milhões de pessoas.
Ainda segundo números do IBGE sobre o impacto da pandemia no mercado de trabalho, o setor foi o segundo mais atingido no país. A Pnad Contínua, divulgada em 28 de janeiro de 2021, mostra que 1,5 milhão de postos de trabalho doméstico foram perdidos de setembro a novembro de 2020, último período analisado.
Entre as dez atividades econômicas avaliadas, o trabalho doméstico foi a segunda com maior perda (-24,2%) na comparação com o mesmo período de 2019, atrás apenas do setor de alojamento e alimentação (-26,7%). Vale ressaltar, no entanto, que, em número absolutos, as perdas são iguais: 1,5 milhão de postos de trabalho.
Se em novembro o governo federal lançou o pacote “A retomada do turismo”, que prevê a preservação de empregos no setor que mais perdeu postos de trabalho proporcionalmente, nenhuma medida para o serviço doméstico foi anunciada, além do Auxílio Emergergencial finalizado em dezembro. Ainda que numerosa e em apuros, a classe não possui apelo suficiente em Brasília. Na Câmara dos Deputados, nem mesmo o projeto de lei 2477/2020, que determinava a exclusão do trabalho doméstico do rol de atividades essenciais e em todo o Brasil durante a pandemia, foi analisado pelos líderes dos partidos.
Dados acessados pela Gênero e Número, também via LAI, nos oito primeiros meses de 2020, no Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo (TRT 2/SP), mostram que 461 processos relacionados à classe foram registrados na instância.
Dos 2.358 assuntos abordados nos processos (cada processo pode conter mais de um assunto), 72% se referiam ao descumprimento de 15 direitos básicos, garantidos pela PEC das Domésticas e pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que incluem reconhecimento de relação de emprego, pagamento de 13o salário e de multa de 40% do FGTS.
MIRTES RENATA, EX-EMPREGADA DOMÉSTICA E MÃE DE MIGUEL, QUE MORREU APÓS CAIR DO 9º ANDAR DE UM PRÉDIO DE LUXO EM RECIFE. (FOTO: REPRODUÇÃO/TV GLOBO)
“Tem baixa judicialização, sim. É dificílimo judicializar”, diz Junia Raymundo, procuradora regional no Ministério Público do Trabalho (MPT) no estado do Rio de Janeiro. A instância tem limitações para atuar no apoio à categoria, tendo em vista que o MPT não pode agir contra violações individuais, a não ser que firam a dignidade humana, como foi o caso de Madalena, resgatada no final de 2020 com ajuda da instituição , após viver 38 anos em condições análogas à escravidão trabalhando para uma família em Minas Gerais.
Ainda assim, o MPT recebeu nos cinco primeiros meses da pandemia 27 denúncias de abusos ou ilegalidades, sendo seis delas diretamente relacionadas à crise sanitária, como as mencionadas no início da reportagem. O TRT 2/SP não disponibiliza as petições iniciais que dão origem aos processos, apenas os assuntos de cada um deles, o que inviabiliza verificar a relação com o contexto da pandemia. Mas os dados acessados até 26 de agosto de 2020 mostram como a crise santitária reduziu os números de processos: 56% deles foram iniciados ao longo de 5 meses, após o decreto de estado de emergência no estado, que determinou a quarentena, em 21 de março de 2020; os demais 44% foram registrados em um período bem menor, de dois meses e meio, de 15 de janeiro à data do decreto.
Trabalho doméstico: essencial para quem?
“A crise socioeconômica e sanitária e a recessão, que é anterior à pandemia, aprofundaram a violação de direitos humanos das trabalhadoras e a proteção dos direitos trabalhistas com o aumento da informalidade. Essas mulheres compõem a maioria da população que é mais atingida pela crise”, afirma a deputada federal Áurea Carolina (PSOL/MG). Em maio de 2020, após a morte de Cleonice e antes da morte de Miguel, ela foi uma das signatárias do projeto de lei 24777/2020, que excluía o serviço doméstico da lista de atividades essenciais durante a pandemia.
A maioria das domésticas não quer entrar na Justiça. A trabalhadora se prejudica, mas não quer magoar o patrão porque eles ‘são muito bonzinhos’. Sempre digo que se fossem bonzinhos, eles davam todos os direitos” — Cleide Pinto, presidenta do Sindicato das Domésticas de Nova Iguaçu (RJ)
Uma das vozes mais participativas na defesa pelos direitos das domésticas no país, ela afirma que não houve aprendizado após as mortes de Cleonice e Miguel. “Pelo contrário: estavam querendo colocar doméstica como trabalho essencial”.
A iniciativa veio do Pará, no início de maio, quando um decreto do governador Hélder Barbalho determinou a continuidade do trabalho da categoria durante o lockdown estabelecido em dez municípios. Após críticas, a medida foi restringida a cuidadores de idosos, de crianças e de pessoas doentes. O decreto contrariava uma nota técnica emitida pelo Ministério Público do Trabalho no início da pandemia, recomendando a dispensa de trabalhadoras domésticas com remuneração, bem como flexibilidade da jornada de trabalho e fornecimento de equipamentos de proteção individual.
“No início da pandemia, a gente sentiu que alguém precisava fazer alguma coisa pelo trabalho doméstico”, afirma a procuradora Junia Raimundo.Mas, do decreto de Hélder Barbalho à morte de Miguel Otávio, passando pelas denúncias que chegaram ao próprio MPT e aos sindicatos, dados e ações evidenciam que o cumprimento das recomendações não foi uma realidade no país.
Fonte:Carta Capital