Drauzio Varella prevê que o ‘Brasil vai pagar o preço da desigualdade’
O médico oncologista Drauzio Varella, com quase 77 anos, em entrevista à BBC News Brasil, se recrimina por já ter sido otimista a respeito do novo coronavírus. O presidente Bolsonaro que continua minimizando a covid-19, o atacou em pronunciamento oficial por essa posição no início da epidemia. “Porque nós recebíamos as notícias da China e essas notícias eram muito ocasionais, e não davam ideia de como era realmente a epidemia”, justificou-se.
Varella concilia reuniões matinais diárias do recém-criado grupo “Todos pela Saúde”, que ele integra como sete técnicos que trabalham para direcionar uma doação de R$ um bilhão feita pelo Itaú Unibanco ao combate do coronavírus, com as demandas que recebe como médico, tirando dúvidas e enviando orientações a respeito da doença.
Na época em que começaram a surgir as primeiras informações sobre o vírus na China, em dezembro do ano passado, ele diz que, como muitos, considerou que se tratava de uma doença de baixa letalidade, como pareciam indicar os dados disponíveis. No entanto, ele observa que, no Brasil, o combate à doença terá que ser adaptado à extrema desigualdade, se comparado aos países do hemisfério norte.
Desigualdade como peculiaridade epidêmica
A desigualdade social impõe condições de vidas muito distintas para ricos e pobres, limitando o acesso de grande parte da população às práticas que previnem o contágio, como lavar as mãos, comprar álcool gel e praticar o isolamento social. Há no país 35 milhões de brasileiro sem acesso à rede de água potável, segundo dados do Instituto Trata Brasil de 2017. Em 2018, antes da crise do coronavírus, chegou a 13,5 milhões o número de brasileiros vivendo abaixo da linha da extrema pobreza, com menos de R$ 145 por mês.
Por isso, ele tem certeza de que a epidemia levará o país a uma “tragédia nacional”. “Eu acho que nós vamos ter um número muito grande de mortes, vamos ter um impacto na economia enorme, uma duração prolongada”, prevê, destacando que a naturalização histórica das mazelas sociais do país será o principal determinante de tal tragédia.
Para ele, a epidemia explicita a olhos nus a desigualdade. Nas redes sociais, gente rica e famosa mostra como está se protegendo no conforto e fartura de suas casas, curtindo a família e dizendo como “reinventaram” suas vidas para melhor. Enquanto isso, multidões de pobres saem às ruas, diante da precariedade de suas moradias, violência doméstica, falta de alimentos e dinheiro para se sustentar.
“É a primeira vez que nós vamos ter a epidemia se disseminando em larga escala em um país de dimensões continentais e com tanta desigualdade”, diz. “Enquanto tivermos essa disseminação em lugares impróprios para a vida humana, você não se livra do vírus. E é esse vírus que ameaça a todos, o tempo inteiro”, afirma Varella.
Ele salienta o drama enfrentado por países europeus, que são países que têm uma estrutura social relativamente bem organizada. Assim como nas grandes capitais brasileiras, com maior afluxo de ricos voltando de viagens internacionais com o vírus, agora a doença atinge as massas mais desfavorecidas. A experiência norte-americana já antecipa o que acontecerá ao mostrar as populações negras, mais pobres, como vítimas mais vulneráveis aos óbitos.
Como comunicador e médico, Varella conhece bem a miséria absurda das periferias onde esses 13 milhões de brasileiros vivem e acredita que vamos aprender a duras penas o que acontece com essas populações quando forem infectadas.
Ele destaca a total falta de condição de higiene, e o único cômodo onde moram quatro adultos e várias crianças. “De dia aquele cômodo é a sala de refeições, de noite a mesa vai para o canto e os colchões saem da parede e vão para o chão, e as pessoas dormem ali. Você não tem condição mínima de separação. Vão dizer ‘fica em casa, não vão para a rua’. Como é que essas pessoas não vão para a rua?”, descreve ele, mencionando ainda o recurso financeiro mínimo que não garante alimentação sequer para alguns dias. Junto com isso, vem as dificuldades burocráticas do governo para oferecer o auxílio emergencial.
Assim como a Itália sofreu pela quantidade de idosos que compõem sua população, e os EUA que não contam com um sistema de saúde unificado e público, o Brasil vai sofrer pela peculiaridade de sua extrema desigualdade. Para Varella, enquanto este ciclo de miserabilidade permitir o contagio do vírus, o sofrimento continuará no país.
O médico não acredita que a desigualdade seja contornável nessa epidemia, apesar de toda a movimentação de governos e sociedade civil organizada. Ele salienta que o problema é que a transmissão é muito rápida. “Eu acho que vai acontecer uma tragédia nacional, eu não tenho dúvida disso. Eu acho que nós vamos ter um número muito grande de mortes, vamos ter um impacto na economia enorme, vamos ter uma duração prolongada”, diz ele ressaltando como os governos estão indefinidos sobre o momento de encerrar medidas mais restritivas.
O sofrimento escondido em caixões lacrados
Ninguém arrisca dizer quando relaxar o isolamento pela responsabilidade que isso implica. Ele diz que, mesmo especialistas de diversas áreas percebem que esta é uma situação totalmente nova, com um vírus novo, mesmo diante da experiência da gripe espanhola. Para ele, são situações diferentes pelas mudanças ocorridas no mundo, desde o início do século XX.
Para piorar, o que vale para a realidade de um país, não vale para outro. O médico procurou descrever didaticamente, na entrevista, o que acontece com o paciente desde que se infecta. Ele termina explicando que uma parcela dos casos vai desenvolver falta de ar por associação com pneumonia. Só então, tem os doentes que vão parar nos hospitais, que se recuperam recebendo oxigênio por máscaras. Os pacientes que vão para insuficiência respiratória progressiva têm que ser entubados, um procedimento invasivo que demanda sedação.
Ele lembra que as pessoas já conhecem a precariedade dos prontos socorros que demoram para atender, atendem mal ou nem atendem. “Só que agora é uma situação diferente. Você só vai para o hospital quando tem falta de ar, que é progressiva e tem que ter os recursos de ventilação mecânica à disposição. Se você não tiver esses recursos, não se trata apenas de voltar para casa, sofrer um pouco e melhorar. Falta de ar é o pior sintoma que existe”, diz ele.
Continuando sua descrição assustadora, o médico explica um processo que a imprensa e médicos evitam expor pela crueldade que envolve. As mortes frequentemente são cercadas de invisibilidade e silêncio, pois, devido ao fator epidêmico, não se tem acesso ao paciente que vai morrer, nem depois do óbito, a não ser os médicos e enfermeiros. “Se você tem dor, toma analgésico, se tem tosse, tem jeito de bloquear. Agora, ter falta de ar é uma morte horrível. Quando você ouve dizer que na Itália os médicos têm que decidir quais são os que vão para a UTI, quem vai ter entubação ou não, quer dizer que os outros morrem de falta de ar. Essa é a situação real e isso que tem que ser colocado para a população. Não é que vai morrer gente, apenas. Vai morrer gente com um enorme sofrimento”, defendeu ele, pois as pessoas continuam associando a doença a uma “simples gripe”.
Miserabilidade e quarentena
Sobre o isolamento, Varella menciona as condições que poucos conhecem em partes do país. Quem mora em um cômodo com quatro crianças, não tem como mantê-las presas num local insalubre. “Você vê as palafitas, que são os piores lugares que eu conheci no Brasil, como você mantém aquelas crianças em um barracão de madeira, no Norte ou Nordeste do país, em uma temperatura que durante o dia chega a 40 graus, 45, 50 graus lá dentro?”, indagou, mencionando ainda que a água, muitas vezes, é trazida de balde de longe.
Varella disse que há iniciativas específicas voltadas para as favelas, mas elas não partem de órgãos governamentais. Ele citou o caso autogestionado da comunidade de Paraisópolis. Puseram praticamente um inspetor ou inspetora em cada quarteirão da favela para fazer esse monitoramento. Na opinião dele, esse tipo de iniciativa deveria ser gerido e unificado pelos governos em todas as favelas.
Essa flexibilização defendida por setores dos governos é francamente criticado por ele. Ele destaca o fato do isolamento vertical não ter sido implementado ou bem sucedido em lugar nenhum. “Separa os mais velhos, os frágeis, e deixa os mais jovens irem ao trabalho. Não foi feito em lugar nenhum por alguma razão, não é verdade?”. Ele lembra que quem fez isso acabaram forçados a adotar o isolamento horizontal. No Brasil, ele acredita que não pode funcionar porque os brasileiros são gregários, moram muito próximos e vão ser infectados e trazer para casa onde infectaram os grupos mais vulneráveis.
Outra opinião dele que confronta o governo brasileiro é que ele acredita que a crise está estabelecida, independente da epidemia. “Quando você tem uma epidemia desse jeito, se você deixar as pessoas saírem, se infectarem pela rua, à vontade, a crise econômica vai acontecer da mesma maneira”. Essa irreversibilidade pode ser amenizada, de acordo com ele, tentando reduzir o número de doentes para abreviar duração da crise.
Proteger os profissionais de saúde
Sobre a destinação do bilhão doado pelo Itaú Unibanco, Varella diz que tenta correr para medidas práticas, antes de fazer grandes planejamentos. São reuniões diárias, por área, em que a parte executiva é tocada pelo doutor Maurício Ceschin (ex-diretor-presidente da Agência Nacional de Saúde). O foco inicial é proteger os profissionais de saúde, porque não há como substituí-los para atender a população doente.
Existe esse projeto de fabricação de máscaras em larga escala, assim como monitoramento da situação dos hospitais em vários municípios. Mas ele ressalta os limites dessa doação, que parece tão impressionante num primeiro momento. “Seria muito dinheiro nas nossas vidas pessoais. Mas se pensar que o SUS investe R$ 240 bilhões por ano, é uma grande ajuda, mas não é um dinheiro ilimitado também”.
O melhor programa de saúde pública do mundo
Considerando que o SUS é um ponto forte do Brasil, Varella considera a desigualdade o seu maior gargalo. Ele destaca o fato do SUS ser o maior programa de saúde pública do mundo. “Os brasileiros desvalorizam o SUS. Quando eu vejo os ingleses, que põem aquela sigla NHS (National Health Service, sistema nacional de saúde em tradução livre) em tudo que é lugar, o NHS deles é uma brincadeira perto do SUS. Tem dinheiro, uma população de alto nível educacional, um país com 66 milhões de habitantes. Quero ver você dar saúde gratuita para 209 milhões em um país desigual e pobre como o nosso!”.
Sem o SUS, nesse momento, a situação brasileira seria ainda mais catastrófica. Nem quem tem um bom seguro saúde, com acesso aos melhores hospitais, pode ficar tranquilo, porque esse hospital maravilhoso pode não ter vaga para mais ninguém. Ele citou o caso dos EUA que não tem um sistema público de saúde como o brasileiro. Conforme explica ele, morrem muito mais negros americanos do que brancos, porque são mais pobres. “Eles evitam ir para o hospital porque sabem que isso pode ser a falência da família inteira. Eu vou morrer no hospital e deixar minha família endividada?”
Ele considera o SUS um sistema perfeito, cujo único gargalo é a falta de recursos, pois o governo federal vem, há anos, diminuindo sua participação no financiamento, aumentando a responsabilidade de estados e municípios. Ele cita também a baixa permanência dos ministros da Saúde no cargo. São 13 ministros em dez anos, com média de dez meses no cargo, para satisfazer as negociatas políticas entre os partidos para apoiar o governo. “O que você faz em dez meses em um país desse tamanho?”
O que salva o ministério, segundo ele, é o corpo técnico preparado. Ele lamentou a demissão de Luiz Henrique Mandetta que tem obedecido as orientações da Organização Mundial da Saúde, assim como a saída de sua equipe. “Você tirar por razões políticas uma equipe que está fazendo um trabalho muito bem feito é muito duro”.
Sofrimento pessoal
Desde que se conscientizou da dimensão da tragédia nacional, ele diz que já acorda angustiado por se sentir responsável. Ele recebe inúmeras demandas de partes remotas do país, que tenta atender, mesmo isso tomando tempo. Ele tenta selecionar pelo impacto que sua intervenção pode ter. É uma sensação parecida com quando ele estagiava em Nova York e percebeu que a epidemia de aids ia chegar ao Brasil, também. Foi angustiante lidar com algo iminente que não tinha remédio, nem agente causador ainda.
No entanto, naquele momento, era preciso enfrentar, especificamente, o comportamento sexual das pessoas para interromper o contágio. Agora, é um vírus que se espalha pelo ar e pode atingir todos. Para cuidar de sua saúde mental, ele diz que apenas estudo e acompanha bem o que está acontecendo.
“Eu procuro ler bastante, vejo tudo o que está sendo publicado nas revistas internacionais, que agora abriram, você não precisa mais ser assinante da revista”, disse, acrescentando que estuda menos oncologia para centrar-se na infectologia.
Transformação social
Apesar de todo o cenário extremo imaginado, Varella acredita que o brasileiro sairá dessa experiência diferente. “Todos nós vamos perder amigos, muitos vão perder pessoas da família, e isso vai nos ensinar que não é possível viver como nós vivíamos até aqui”. Ele criticou o modo como governos reiteradamente gastam recursos preciosos com “elefantes brancos”, como estádios que agora estão virando hospitais.
“Essa irresponsabilidade social que nós temos tido no decorrer de tantos anos está nos levando a uma situação muito difícil agora, e isso vai deixar um aprendizado. Primeiro: o SUS nunca mais vai ser o mesmo, porque nós agora estamos conscientes da importância dele”, acredita.
O SUS tem que ter prioridade, segundo ele. “A saúde tem que ter prioridade porque nós não vamos conseguir construir um país civilizado com esse desnível de acesso, onde alguns têm acesso à melhor tecnologia, aos melhores médicos, aos melhores hospitais, e outros ficam relegados ao que é possível dar para eles”.
Varella concluiu ressaltando a importância do uso das máscaras, inclusive para crianças. “Porque ensinando as crianças nós vamos ensinar os adultos. Não foi assim com o cinto de segurança? A criança entrava no carro, puxava o cinto de segurança e olhava para o pai: pai, põe o cinto. O pai ficava sem graça de o filho pequeno estar mandando ele colocar o cinto e passou a usar o cinto. Foi assim com o cigarro também, não foi? Ensina as crianças que não podem fumar, que você vai morrer, vai ter doenças graves, a criança chegava em casa ‘ô pai, você vai morrer, para de fumar, eu não quero ficar sem você’. Um estímulo forte, uma criança que diz uma coisa dessas”. Ele acredita que as máscaras terão que ser usadas por muito tempo, pois o vírus vai ficar um bom tempo entre nós. “Não com essas características que está tendo agora, promovendo essa mortalidade absurda, mas ele vai levar muito tempo para desaparecer do contato com a humanidade”.
Via Portal Vermelho