Uberizados no Brasil: quem são, como resistem
Geral 01/02/2022 Escrito por: Outraspalavras
Eles se articulam por grupos de WhatsApp e associações de trabalhadores, recém-formadas e que, cada vez mais, ganham protagonismo nas disputas contra as empresas-aplicativo. Como protestos, suas armas são bloquear temporariamente o funcionamento dos serviços das plataformas – e incidir sobre a opinião pública. Por vezes, estreitam laços com sindicatos. Os motoristas uberizados são, em sua maioria, homens, entre 20 e 50 anos, desempregados, que já rodaram por diversas outras atividades profissionais, inclusive na informalidade. Já os entregadores são mais jovens, negros, da periferia, e estão se inserindo pela primeira vez no mercado de trabalho.
Eles não se consideram empreendedores, mas trabalhadores em busca da subsistência. São a face mais visível de um amplo processo de plataformização do trabalho, que já avança sobre diversas outras categorias, da medicina ao jornalismo, como aponta o cientista social Felipe Moda, em entrevista a Outras Palavras. Jovem e talentoso pesquisador, ele é membro do Grupo de Pesquisa Classes Sociais e Trabalho (GPCT) e doutorando pela Unifesp, onde estuda os impactos destas plataformas digitais nas condições de trabalho – e a organização política dos trabalhadores a elas subordinados.
Confira sua entrevista:
Estão se ampliando, em todo o mundo, as lutas pelos direitos dos trabalhadores que estão subordinados às plataformas. No contexto internacional, quais as principais vitórias, mesmo que parciais, dos uberizados? Como eles estão se articulando?
No âmbito internacional, acredito que as principais novidades foram a aprovação da “Ley Rider” na Espanha, que passou a reconhecer o vínculo de emprego entre os entregadores e as empresas e determinar que as corporações divulguem as regras e instruções algorítmicas que se baseiam para organizar os processos de trabalho, e o reconhecimento pela Suprema Corte do Reino Unido dos motoristas da Uber como parte da categoria de “workers”, uma figura jurídica intermediária entre o empregado (employee) e o trabalhador autônomo, garantindo assim alguns direitos, como aposentadoria, férias e salário mínimo aos motoristas. Além disso, no final de 2021, a Comissão Europeia deu algumas diretrizes de como os países da União Europeia devem tratar esses trabalhadores, indicando pela existência de vínculo empregatício nesta relação de trabalho.
São vitórias ainda parciais dos trabalhadores, pois são ações que não garantem a totalidade dos direitos trabalhistas existentes nos países aos trabalhadores plataformizados e, em sua maioria, são medidas vinculadas a categorias profissionais específicas, não compreendo a plataformização do trabalho como uma lógica de organização produtiva que se espalha para as mais diversas profissões. De todo modo, são vitórias que devem ser comemoradas, em especial se considerarmos que as disputas em torno das leis trabalhistas nos últimos anos foram marcadas pela retirada de direitos. Esse avanço nas legislações e no entendimento sobre essa relação de trabalho estão vinculados aos processos de lutas travados pelos trabalhadores, sendo crescente as articulações e as ações coletivas desempenhadas por estes trabalhadores. As pautas de reivindicações costumam ser variadas em cada país, a depender das características existentes em cada mercado de trabalho, porém as formas de organização coletiva desempenhadas parecem ser semelhantes nas diferentes regiões: grupos virtuais de trocas de mensagens; protestos de rua que buscam bloquear o funcionamento dos serviços das plataformas; a criação das primeiras associações de trabalhadores plataformizados e, em alguns locais, uma vinculação com o movimento sindical.
Como as empresas-aplicativos buscam dar uma contrarresposta, em nível global, a esse movimento de reivindicação de direitos trabalhistas por parte de seus trabalhadores? Buscam “mudanças estratégicas”?
Todas elas contam com um robusto setor de relações governamentais, formado por advogados que constantemente fazem lobby nas casas legislativas, visando à não aprovação de projetos de leis que contrariem seus interesses. Ou seja, são empresas que atuam como entes ativos nas transformações das relações trabalhistas existentes, não buscando apenas maneiras de burlar as regras estabelecidas, mas transformá-las. Quando veem seus interesses contrariados, as empresas passam a ameaçar com o fim dos serviços nos países, fazendo com que muitos dos trabalhadores passem a ser contra a regulação dos seus empregos devido ao medo de ficarem desempregados. Vale destacar que, nos últimos anos, a Uber, por exemplo, parou de prestar serviços na Colômbia e em Bruxelas (Bélgica).
Além disso, as empresas do setor buscam diferentes formas de cooptação das reivindicações dos trabalhadores: durante as disputas em torno da “Ley Rider” espanhola, por exemplo, a Deliveroo incentivava, através de bônus e promoções, a filiação dos entregadores numa associação contrária à regulação do trabalho, buscando com isso demonstrar que os próprios trabalhadores não queriam o reconhecimento do vínculo empregatício. Outro exemplo interessante ocorreu no Brasil, ano passado, com a realização do “Fórum dos Entregadores”, uma reunião organizada pelo iFood com entregadores escolhidos pela empresa para debater os problemas da categoria, tentando com isso melhorar alguns dos aspectos existentes no serviço sem atacar o principal problema apontado pelos entregadores no Breque dos Apps: as baixas taxas pagas pelas empresas. Nesse sentido, as empresas atuam, principalmente, em duas frentes para impedir a regulação das atividades: por um lado, fazendo pressão nos legisladores e, por outro, disputando ideologicamente os próprios trabalhadores, a partir da ameaça de que “é melhor ter emprego do que direitos”.
De forma tardia, o Brasil sancionou o Projeto de Lei 1665/2020, de autoria do deputado federal Ivan Valente (PSOL-SP), que prevê diversas garantias aos uberizados na pandemia. Mesmo provisória, o que representa essa conquista na conjuntura do trabalho precário no país?
Foi a primeira legislação nacional aprovada em prol dos trabalhadores plataformizados, mas restrita aos entregadores por aplicativo. O projeto prevê que as empresas do setor de entregas por aplicativo devem, durante o estado de calamidade pública decorrente da pandemia: 1) contratar seguro aos entregadores contra acidentes e por doença contagiosa; 2) garantir assistência financeira aos trabalhadores afastados em razão de acidente ou por suspeita de contaminação pelo coronavírus; 3) garantir a distribuição de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) aos trabalhadores; 4) garantir o acesso à água potável, alimentação e espaço seguro para descanso entre as entregas e 5) garantir que os restaurantes cadastrados nas empresas permitam o uso do banheiro pelos entregadores. Vale ressaltar que o projeto, apesar de tramitar em regime de urgência devido à pandemia, só foi votado no final do ano passado, quase dois anos após os primeiros casos de Covid-19 no país.
E como a pandemia impactou esses trabalhadores?
Ela piorou as condições de trabalho dos entregadores, além de tornar impossível realizar o distanciamento social ou momentos de quarentena, pois os que ficam em suas casas para evitar o contágio pelo vírus acabam sem nenhuma remuneração ao final do mês. Os entregadores também viram sua jornada de trabalho aumentar, sua renda cair e foram obrigados a aumentarem seus custos individuais, já que a empresa não fornecia EPIs, como demonstrou uma pesquisa realizada no âmbito da Remir. A garantia de melhores condições de trabalho para os entregadores durante a pandemia é algo essencial. E ainda que o projeto não verse sobre os temas centrais que orquestram o funcionamento das empresas do setor – e nem parta do patamar mínimo do reconhecimento da subordinação dos entregadores às empresas –, deve ser compreendido como um primeiro passo, que pode gerar um debate público em torno da agenda da regulação do trabalho plataformizado. Deve ser comemorado, em especial por ter sido realizado em um período marcado pela retirada de direitos e de garantias sobre o trabalho. Mas, agora é necessário seguir avançando neste debate: pressionar o Congresso Nacional para aprovar leis que reconheçam a relação hierárquica existente nessa relação de trabalho, garantir os direitos trabalhistas previstos em nossa Constituição e regular outras áreas em que a plataformização do trabalho vem avançando.
Quais outros projetos no Congresso podem mobilizar a luta pelos direitos dos uberizados? A chamada “minirreforma” trabalhista impactará esses trabalhadores?
Desde o “Breque dos Apps”, diversos projetos tramitam na Câmara Federal sobre o tema dos trabalhos plataformizados, porém, em sua maioria eles falham em três aspectos: 1) são restritos ao período da pandemia; 2) não combatem à lógica de funcionamento desta modalidade de trabalho, muita vezes aprofundando-a; ou 3) são restritos a uma ou a outra categoria profissional. Assim, até onde consegui acompanhar, não temos um projeto de vise regular de fato essa relação de trabalho no Brasil, o que precisa ser construído em conjunto com os trabalhadores do setor. Ao mesmo tempo em que falhamos em construir um projeto de regulação dos trabalhos plataformizados, o atual governo, através do Grupo de Altos Estudos sobre o Trabalho (Gaet), tenta pôr fim às disputas judiciais existentes sobre a existência ou não de vínculo empregatício dos trabalhadores com as plataformas. A partir da proposta de uma nova “reforma” trabalhista, que aprofundará a retirada de direitos realizados com a “reforma” de 2017, o Gaet defende que seja vedado o reconhecimento de vínculo entre os trabalhadores e as plataformas, um retrocesso que dificultará a construção de novas mobilizações dos trabalhadores do setor, pois será concretizado que a relação entre eles e as empresas é de prestação de serviço. Portanto, a construção de um projeto que avance na consolidação dos direitos desses trabalhadores é urgente, já que, em alguns meses, poderemos sofrer um forte ataque.
Em Porto Alegre, no ano passado, a Uber foi condenada por dumping social: a Justiça, enfim, reconheceu que ela usa tecnologia para violar direitos sociais – e “manipular jurisprudência”. O que isso representou para a luta dos uberizados no Brasil?
Foi uma decisão bastante importante do Tribunal Regional do Trabalho do Rio Grande do Sul (TRT4), pois partiu do entendimento de que a Uber controla e fiscaliza minuciosamente as atividades dos motoristas, mostrando como ela se utiliza de um aparato tecnológico para burlar as legislações trabalhistas existentes. Isso é um grande avanço em relação ao que vem sendo compreendido em outros tribunais do País. Além disso, a condenação de dumping social reconhece que as práticas de burlamento das leis trabalhistas não recaem apenas sobre “um ou outro motorista”, mas penaliza toda a sociedade através da promoção da precarização do trabalho e compreende que a empresa tem uma vantagem desleal em relação aos seus concorrentes. Ou seja, questiona de maneira completa a justificativa que a Uber embasa para oferecer seu serviço: ser apenas uma empresa de tecnologia que conecta passageiros e motoristas autônomos. Essa decisão vai ao encontro com o que diversas pesquisas já demonstraram: o modelo de negócios da Uber não é uma novidade, uma “disrupção”, mas a utilização de um aparato tecnológico para reproduzir, de maneira escamoteada, práticas trabalhistas existentes há décadas. Por isso o entendimento do TRT4 é importante para a luta dos trabalhadores plataformizados, pois serviu para denunciar as práticas de controle, organização e gerenciamento do trabalho desenvolvidas pelas empresas, demonstrando como esta não é uma atividade realizada de forma autônoma pelos motoristas.
Nos últimos anos, você se dedicou a estudar os motoristas uberizados. Mas a visão sobre eles, inclusive entre os setores progressistas, parece ainda ser cercada de clichês. Quem são eles? Quais suas principais reivindicações? Como se articulam por mais direitos? Há canais de diálogo com as empresas-aplicativos?
Traçar um perfil social de quem são os motoristas por aplicativo é algo difícil, já que tivemos poucas pesquisas quantitativas sobre eles. De maneira geral, o que fui percebendo pelas entrevistas e pelo meu acompanhamento em protestos e grupos virtuais, é uma categoria bastante masculinizada, na faixa etária entre os 20 e 50 anos, com a maioria tendo o emprego de motorista como sua ocupação principal e que, em sua trajetória profissional, experimentaram diversas outras ocupações, sendo constante a alteração de momentos de emprego e de desemprego, de formalidade e informalidade. Assim, são membros da classe trabalhadora e buscam nos aplicativos uma maneira de garantirem a sua sobrevivência. Em geral, chegaram ao trabalho de motorista por estarem desempregados ou por estarem em empregos de baixa remuneração, vendo nessa ocupação uma forma de melhorarem a sua condição de vida, o que de fato aconteceu para alguns.
Creio que o clichê que parte dos setores progressistas têm sobre esses trabalhadores deriva de uma possível valorização do modo de vida empreendedor realizada por eles e, consequentemente, uma proximidade deles com o campo mais à direita do espectro político. Isso é, em partes, verdade. Até hoje vi pouquíssimos motoristas que se consideravam empreendedores apenas por trabalharem nos aplicativos. Pouquíssimos consideram que estão realizando algum tipo de empreendimento ao saírem nas ruas com seus veículos esperando um passageiro. Ao mesmo tempo, esses trabalhadores estão jogados à própria sorte, sem assistência do Estado e das empresas, reforçando uma visão de que “quem trabalha duro consegue uma melhor condição de vida” e de que “você deve garantir sua reprodução social de maneira autônoma”, em consonância com os preceitos empreendedoristas. Construir essa visão é, no meu ponto de vista, bastante compreensível, dada as condições de trabalho a que estão submetidos. Mas, mesmo assim, a maioria se considera trabalhador, ainda que tenham certa dificuldade em caracterizar para quem trabalham. Enquanto trabalhadores, os motoristas buscam constantemente melhorar as suas condições em que desempenham suas atividades, muitas vezes a partir de confrontações, ora mais aberta ora mais velada, com as regras impostas pelas empresas. As principais maneiras de articulação entre eles é a partir dos grupos de troca de mensagem em redes virtuais, utilizados para comentar sobre o seu cotidiano de trabalho e traçar estratégias comuns para melhorarem seus ganhos, e pelas associações existentes da categoria.
Poderia nos contar mais sobre essas associações?
Hoje já existem associações em quase todas as grandes cidades do país. No geral, em especial na cidade de São Paulo, as principais reivindicações desses trabalhadores envolvem o aumento das taxas repassadas pelas empresas a eles por corrida, o fim dos bloqueios indevidos e por maior segurança no trabalho, visto que é um setor bastante afetado pela violência urbana, a qual muitas vezes é realizada por clientes cadastrados com contas falsas nas plataformas. As maiores associações de motoristas conseguem estabelecer algum canal de diálogo com as empresas, o que não necessariamente significa que suas reivindicações são atendidas. Porém, eles conseguem apresentar as suas principais demandas. Caso elas não envolvam mudanças estruturais no modelo de funcionamento dos serviços ou uma diminuição dos lucros das empresas, é até mesmo possível que as empresas tentem alguma solução para os problemas apresentados. Um exemplo disso foi uma importante luta dos motoristas paulistas, em 2019, por mais segurança no trabalho. O resultado foram pequenas modificações no funcionamento dos aplicativos, buscando diminuir os riscos existentes. Mudanças parciais, mas que representaram algum avanço e decorreram da articulação dos trabalhadores.
Foi noticiado um “êxodo” de motoristas da Uber, cuja alta do preço do combustível pode ter sido o estopim. Poderia contar-nos mais sobre esse fato?
Uma das grandes dificuldades em estudar estas empresas é que elas funcionam como verdadeiras caixas-pretas. Não existem dados de quantos trabalhadores elas têm, quantos novos trabalhadores se cadastram nas plataformas por mês, quantos deixam de trabalhar no setor, qual a jornada média dos trabalhadores, etc. Então as análises, muitas vezes, são baseadas no relato dos próprios trabalhadores sobre suas rotinas e nas “impressões” que temos acompanhando os grupos existentes das categorias. O que foi possível acompanhar a partir dos motoristas indica que, desde o início da pandemia, o trabalho no setor está bastante complicado. Nos primeiros meses, os rendimentos dos motoristas foram bastante afetados devido às políticas necessárias de distanciamento social. O fechamento de bares e baladas e a adoção do homeoffice por diversas empresas fez com que a demanda pelo serviço caísse bastante – e como os ganhos dos trabalhadores são exclusivamente vinculados à quantidade de corridas por eles realizadas, seus rendimentos caíram drasticamente. O trabalho plataformizado também tem como característica a transferência dos custos do trabalho aos trabalhadores e a crescente alta dos combustíveis fez com que muitas das corridas, em especial as de curta distância, não valessem a pena de serem realizadas, já que o valor recebido por ela não arcava com os custos existentes. Vale ressaltar que já são quase cinco anos sem uma política séria de reajuste das tarifas pelas empresas.
Frente a esse cenário, temos a impressão de um “êxodo” dos motoristas, o que não conseguimos comprovar com números, mas que aparece na dificuldade cada vez maior de conseguir realizar uma viagem. Inclusive, nesse começo de ano, o Procon-RJ multou a Uber e a 99 pelo excesso de cancelamento de viagens. Essa dificuldade pode derivar tanto de um menor número de trabalhadores disponíveis, mas também de uma ação organizada por parte dos motoristas em não aceitarem corridas consideradas não vantajosas financeiramente. As empresas buscam de toda maneira identificar e punir os motoristas que praticam esta “seleção” de corridas, porém se elas defendem que esse trabalho é realizado de maneira autônoma, nada mais justo que os trabalhadores tenham poder de decisão sobre quais trabalhos vão aceitar. Assim, como clientes, creio que a nossa função, quando temos dificuldade em encontrar um motorista, é entender o lado desses trabalhadores que estão vendo seus rendimentos serem corroídos – e cobrar das plataformas melhorias nas condições de trabalho, até mesmo pelo fato de, que muitas vezes, a própria existência do serviço está se tornando disfuncional.
Ao lado dos entregadores, os motoristas uberizados constituem as categorias mais visíveis da uberização no Brasil. Poderia nos contar sobre o perfil dos entregadores? Há articulação entre essas duas categorias?
Os entregadores, em especial os que trabalham com bicicleta, tem um perfil um pouco diferente dos motoristas. Parece que a principal diferença entre os entregadores e os motoristas é que os entregadores são mais jovens que estão se inserindo pela primeira vez no mercado de trabalho, ou possuem uma menor experiência profissional. Segundo pesquisa realizada em 2019, a tipologia do entregador ciclista por aplicativo na cidade de São Paulo é de um homem, negro, jovem, morador da periferia, com ensino médio completo, que trabalha de 9 a 10 horas todos os dias da semana, e tem remuneração de R$ 992 mensais. De acordo com algumas pesquisas, existe também uma diferença entre os entregadores ciclistas e motociclistas, que são um pouco mais velhos e recebem remunerações maiores. Até onde sei, não existe no Brasil uma articulação política, minimamente permanente, entre as duas categorias profissionais, o que dificulta pensarmos projetos de lei que abarquem os interesses de diferentes setores atualmente subordinado por plataformas. Apesar de terem características semelhantes na maneira em que suas atividades são organizadas, as ações coletivas são, geralmente, pensadas no interior de uma das categorias. Em um dos “Breque dos Apps”, no Rio de Janeiro, tivemos a presença de alguns motoristas, incentivados por uma associação e que se somaram à luta dos entregadores, pedindo melhores taxas para ambas as categorias. Porém, são momentos pontuais e, geralmente, não são precedidos de uma organização conjunta dos diferentes setores para o protesto.
Ainda sobre os entregadores. Eles fizeram o Breque dos Apps há dois anos, mas o que se deu desde então? Por que o movimento parece ter refluído? Há perspectivas de reorganização?
As pesquisas e relatos sobre greves dos entregadores ao redor do mundo parecem indicar que elas têm um comportamento bastante parecido: acontecem com bastante força e de forma aparentemente repentina, porém rapidamente refluem. Por essas características, Cant (autor de Delivery Fight, publicado pela Veneta em 2020), ao analisar as mobilizações dos entregadores no Reino Unido, afirma que existe uma “organização invisível” da categoria, pois a auto-organização dos trabalhadores ocorre por canais invisíveis, não vinculados às estruturas tradicionais da classe trabalhadora, como os grupos de WhatsApp e os pontos de espera dos entregadores por novos pedidos. Porém, a manutenção permanente de mobilizações nesses grupos é bastante difícil, criando situações de baixa das lutas após as mobilizações. Acredito que esses momentos de refluxos do movimento se conectam a esta forma organizativa. Ao mesmo tempo em que ela é uma possibilidade de organização rápida de ações coletivas, a organização por meio desses grupos, sem uma estrutura mais tradicional de organização dos trabalhadores, faz com que o movimento de acúmulo das lutas seja dificultado. Soma-se a isso a altíssima rotatividade existente entre os entregadores, o que dificulta construções de mais longo prazo e cria a necessidade de uma educação política constante sobre as consequências dessa forma de trabalho com os novos entregadores.
Porém, creio que caracterizar o movimento dos entregadores apenas em “momento de refluxo” é algo parcial, pois o que vimos em 2021 foi uma forte mobilização dos entregadores em algumas cidades: Jundiaí, São José dos Campos, Atibaia, Goiânia, Niterói, São Gonçalo, etc. Em janeiro de 2022, já tivemos manifestações dos entregadores da iFood em Brasília e da Rappi em São Paulo. Além dessas greves, os entregadores cotidianamente promovem diversas ações para garantirem respeito pelo seu trabalho, como o travamento de restaurantes que demoram para liberar os pedidos ou manifestações na porta da casa de clientes que desrespeitaram algum trabalhador. Ou seja, é uma categoria que segue politicamente bastante ativa, talvez sendo uma das mais ativas do País nos dias atuais. Então, me parece que a maior dificuldade vem sendo a construção de grandes mobilizações nacionais, como foram os Breque dos Apps, ainda que seja cotidiana as ações coletivas dos trabalhadores.
Há diversas outras categorias em processo de uberização: advogados, arquitetos, serviços de beleza, cuidado etc. Quais estão em estágio mais avançado?
Por meio das plataformas, hoje é possível você contratar diaristas, médicos, advogados, passeadores de cachorro, DJs, programadores de softwares, treinadores de Inteligência Artificial, cabeleireiros, manicures, psicólogos, etc. São pouquíssimas as profissões que conseguem, nos dias atuais, escapar da plataformização. Quase diariamente, surgem empresas que se intitulam como a “Uber de um novo setor”. Esse fenômeno não atinge apenas as ocupações historicamente mais precarizadas; é um movimento transversal ao mercado de trabalho. Evidentemente, os entregadores e os motoristas são a face mais evidente e consolidada desse processo, porém a tendência é que, nos próximos anos, outras profissões também caminhem no mesmo sentido. Digo tendência pois as formas de trabalho não se desenvolvem de maneira linear e unilateral, dependendo da maneira com que a luta de classes é realizada.
Saber em quais profissões este processo avançará mais rapidamente é um pouco de aposta, mas acredito que o setor de beleza e o de trabalho doméstico remunerado devem ser os mais atingidos. Digo isso pelo fato desses setores já terem plataformas bastante consolidadas em outros países e que estão em crescimento no Brasil. Além disso, são categorias profissionais marcadas pela informalidade e que, historicamente, atuam com diversas características semelhantes às existentes na plataformização do trabalho. No setor de beleza, por exemplo, grande parte dos salões de cabeleireiros/as e manicures funcionam com o proprietário “alugando” parte do espaço de trabalho para os profissionais, que muitas vezes também são responsáveis por seus equipamentos de trabalho. Já no caso do trabalho doméstico remunerado, prevalece o modelo de contratação de diaristas, que descaracteriza o vínculo empregatício. Ou seja, são trabalhos já organizados de maneira semelhante aos trabalhos plataformizados, com muitos clientes, um espaço fértil para o avanço das plataformas.
A informalidade e a precarização sempre constituíram parte significativa do trabalho no Brasil, mesmo com a CLT. Como as empresas-aplicativos impactaram essa realidade?
Esta é justamente a investigação que estou fazendo em meu doutorado e, portanto, não tenho uma resposta final. Me parece que, ainda que essas empresas atuem nos mais diversos países, os impactos deste processo variam se analisamos formações sociais com histórias e características distintas. No caso brasileiro, as altíssimas taxas de desemprego e informalidade que estruturam o nosso mercado de trabalho desde a origem do trabalho assalariado, após um longo período de escravidão, com certeza estão na base para a maneira que a exploração, e a aceitação dela, ocorre no trabalho plataformizado. Isso porque a força de trabalho brasileira está “acostumada” a trabalhar sem a garantia de direitos trabalhistas, com baixos salários e jornadas de trabalho que extrapolam o que é previsto na legislação, por exemplo, sendo constituinte do nosso modo de vida se submeter a tais condições.
Nesse sentido, ao analisarmos o Brasil, temos a impressão de que as plataformas de subordinação do trabalho de fato pouco impactaram na maneira como a maioria da classe trabalhadora experimentou as suas condições de trabalho. Em alguns casos, como já ouvi relatos de motoristas, elas inclusive criam a impressão de uma melhora na condição de vida, já que muitas vezes empregos regidos pela CLT, como os de atendentes de telemarketing, tem uma remuneração inferior à dos motoristas. Evidentemente, isso não pode ser generalizado para todas as categorias profissionais, porém é uma contradição existente em alguns casos.
Ao mesmo tempo, estou tentando apreender, de maneira mais aprofundada, como a plataformização do trabalho impacta os processos de informalidade, pois, se nada se transformasse, as empresas não apostariam nas plataformas, bastaria deixar tudo como está. Alguns pesquisadores, no qual me incluo, estão trabalhando a hipótese de ela ser uma forma de inserir diversos trabalhos, antes autônomos, aos processos de valorização do capital, promovendo uma subsunção do trabalho informal. Boa parte dos serviços eram realizados a partir de pequenas empresas ou por trabalhadores de fato autônomos, que criavam sua clientela a partir de relações locais e não tinham suas atividades subordinadas aos interesses das grandes corporações. Hoje, a partir da enorme capacidade de armazenamento e análise de dados existente nas plataformas, é possível subordinar milhares de trabalhadores informais ao redor do mundo a uma mesma empresa, promovendo assim uma nova relação entre o processo de valorização do capital e os trabalhos informais. Assim, me parece que o grande intuito da plataformização do trabalho é o de um novo avanço das fronteiras produtivas do capital e aumentar a mercantilização da força de trabalho.
Agora, sobre a situação social que leva aos uberizados. O número deles está crescendo, devido ao desemprego? Os muito jovens preferem um trabalho em período parcial, diante da falta geral de perspectivas? O que está acontecendo com os motoristas do Uber que abandonam a plataforma — para onde vão? É real, como parece, que há cada vez mais entregadores de plataforma? Por quê?
Como disse, é difícil termos certezas sobre os dados numéricos envolvidos nessas empresas. Então, não é possível afirmar com todas as letras que determinadas categorias estão diminuindo ou crescendo. De todo modo, no caso específico dos entregadores, algumas entrevistas dadas por gerentes das principais empresas indicam que, durante a pandemia, tivemos um crescimento do setor. A Rappi declarou que iria triplicar o número de entregadores no Brasil nos dois primeiros meses de 2020. Já a Loggi afirmou que estava preparada para atender o triplo do número de entregas diárias. A iFood declarou que, de fevereiro para março de 2020, viu o número mensal de pessoas querendo trabalhar na plataforma indo de 85 mil para 175 mil. Provavelmente, este crescimento se conecta com o aumento da taxa de desemprego no país durante a pandemia. Como essas empresas não têm um número fixo de trabalhadores, muitos dos novos desempregados buscam esta forma de trabalho, em uma tentativa de garantir mínimas condições para a sua reprodução social. Como o primeiro pagamento acontece dias após as primeiras entregas, é muito atrativo aderir às plataformas. Assim, se cadastrar em uma plataforma de serviços não necessariamente significa uma preferência a esta forma de trabalho, mas é uma necessidade vivenciada por muitos em um contexto social de desemprego crescente. Porém, também é verdade que, em muitas entrevistas, os trabalhadores indiquem uma preferência a esta forma de trabalho, em especial devido à flexibilidade de horários e a não existência de um chefe no seu ouvido a todo momento, mesmo compreendendo que seu trabalho é subordinado a uma empresa – e que, na verdade, eles têm um chefe que aparece de forma mediada pelos aplicativos.
No meu ponto de vista, é bastante compreensível a valorização desses elementos, já que boa parte da população, inclusive eu, prefere trabalhar em horários flexíveis do que ficar sentado em frente a um computador 8 horas por dia, sem parar. Mas no caso desses trabalhadores, a valorização do trabalho com horários flexíveis encontra uma contradição: as longas jornadas diárias que, muitas vezes, duram mais de 12 horas – todos os dias da semana. Ou seja, temos um trabalho com horários flexíveis que, na verdade, é realizado quase que o dia todo. Ainda assim, a possibilidade de poder “faltar” um dia do trabalho por escolha própria, de ficar em casa descansando ou resolvendo problemas pessoais, é um aspecto reforçado pelos trabalhadores como positivo em sua condição – e que deve ser considerado quando pensamos em projetos para regular essas atividades.
Em alguns países, trabalhadores uberizados têm tentado articular, por meio da tecnologia e consciência social, cooperativas. Paulo Galo, líder dos Entregadores Antifascistas, já contou a Outras Palavras sobre a luta para uma iniciativa como essa. Como você as analisa? Quais as potências, entraves e limitações?
O debate sobre o papel das cooperativas para a construção de sociedades igualitárias tem uma longa trajetória na esquerda, que remonta às disputas entre Rosa Luxemburgo e Bernstein sobre os caminhos do SPD alemão no início do século 20. Em décadas recentes, teóricos brasileiros também deram uma importante contribuição a esse debate a partir das teorias e das iniciativas, em torno da “economia solidária”. Digo isso pois parece que parte do grande entusiasmo existente em alguns setores sobre o “cooperativismo de plataforma” ignora debates anteriores, reproduzindo uma espécie de determinismo tecnológico por acreditar que a solução para os problemas sociais será realizada apenas a partir da construção de novos aparatos tecnológicos. Acredito que o desenvolvimento de cooperativas pelos trabalhadores pode representar benefícios importantes, em especial se conseguirem garantir condições de vida superiores aos empregos subordinados às grandes corporações. O cooperativismo pode também ser um importante espaço de educação política, pois, se de fato for implementado um colegiado democrático e que envolva os trabalhadores nos processos decisórios, ele rompe com uma divisão fundamental à produção capitalista: a concepção e a execução do trabalho.
Portanto, penso que é fundamental sabermos aonde queremos chegar com esse movimento. Se o intuito for a construção de uma rede de trabalhadores e empresas que buscam garantir melhores condições de trabalho e fortalecer as iniciativas de auto-organização dos trabalhadores, acredito que esse processo pode ser bastante positivo, apesar das inúmeras pressões econômicas que irão existir. Porém, se a ideia for rivalizar com as grandes empresas do setor, acho que a chance de vitória é próxima a zero. Como o próprio Paulo Galo já disse, em inúmeras entrevistas, o poder financeiro delas é muito maior do que qualquer cooperativa, o que dá a elas a capacidade de quebrar qualquer iniciativa que as rivalize, através, por exemplo, de promoções dadas aos clientes. Creio que o debate é bastante complexo e não deve ser visto como uma contraposição à plataformização do trabalho, mas, sim, apoiado enquanto uma forma de auto-organização dos trabalhadores. Existem atualmente, em São Paulo, iniciativas bastante interessantes nos moldes cooperativos, como o “Contrate quem Luta” do MTST e o coletivo de entregadores/as “Señoritas Courier”, demonstrando como é possível a consolidação de projetos neste modelo.