Autonomia do Banco Central dificulta saída da crise, afirma economista
Geral 10/02/2021 Escrito por: Romice Mota
Parado há mais de trinta anos no Congresso Nacional, o projeto que dá autonomia do Banco Central renasceu sob a égide de Jair Bolsonaro e pode ser aprovado nesta semana. O texto, que passou pelo Senado em novembro passado, ganhou prioridade na Câmara, agora sob a batuta de Arthur Lira (PP-AL). “Um grande sinal de previsibilidade para o futuro da economia brasileira. Um grande sinal de credibilidade para o Brasil perante o mundo”, escreveu Lira, na segunda-feira (8), ao anunciar acordo para votação.
A bandeira une bolsonaristas e liberais. Seu rol de apoiadores vai de extremistas como o pastor Marco Feliciano (Republicanos-SP) e a deputada Bia Kicis (PSL-DF) a moderados como Rodrigo Maia (DEM-RJ) e João Amoêdo (Novo). A oposição no Congresso protesta, com o argumento de que o tema não foi devidamente debatido em comissões na Câmara.
A discussão, entretanto, divide economistas. Hoje, o Banco Central está subordinado ao presidente, que decide quem manda no BC e por quanto tempo. A mudança garante a prerrogativa da nomeação, mas obriga o presidente a justificar a demissão desses diretores antes dos quatro anos de mandato.
A proposta também altera a data de início e do fim dos mandatos. O presidente do Banco Central passaria a tomar posse no 3º ano de gestão do presidente da República, permanecendo no poder pelos próximos quatro anos. Já a nomeação dos diretores seguiria uma escala ao longo dos quatro anos de gestão do governo federal.
De um lado, defende-se a maior autonomia do Banco Central em relação ao poder Executivo, porque o trabalho da entidade deve, supostamente, estar longe da pressão política.
De outro lado, críticos apontam que o Banco Central não pode ser “independente”, pois deve seguir a agenda econômica eleita nas urnas.
Outro alvo desse debate é o papel do Banco Central.
Desde que foi criado, em 1964, o Banco Central é ligado ao Ministério da Economia
Atualmente, sua função é controlar a inflação, ou seja, buscar a estabilidade dos preços dos produtos que, por exemplo, compramos no supermercado. Com inflação alta, paga-se mais pelo que se compra. Para evitar esse aumento, portanto, o Banco Central regula a estabilidade do real, controlando taxas de juros e de câmbio.
Defensores da autonomia, em geral, creem que o papel do Banco Central deve ser, somente, controlar os preços dos produtos e perseguir sua estabilidade. Já os críticos creem que ser também função do Banco Central trabalhar pelo desenvolvimento econômico e pelo combate ao desemprego, aliado às políticas do governo eleito.
Professora da UnB, Maria de Lourdes Rollemberg Mollo é especialista em Economia Monetária
Para Maria de Lourdes Rollemberg Mollo, professora de Economia da Universidade de Brasília e especialista em Economia Monetária, o que está em jogo é o papel do Estado.
Os defensores da autonomia do Banco Central, aponta ela, são em maioria adeptos do enxugamento do estado e da autorregulação do mercado. Já os críticos, sobretudo progressistas, requerem maiores poderes ao Estado sobre a economia – dar autonomia ao Banco Central, portanto, seria retirar do governo eleito a capacidade de interferir no processo de desenvolvimento.
“A autonomia do Banco Central pode, com certeza, dificultar a saída da crise”, considera Maria de Lourdes. “Como há essa divergência teórica entre os economistas, os governos mais progressistas ficam numa camisa de força.”
Confira a entrevista a seguir.
CartaCapital: O que fundamenta a defesa da autonomia do Banco Central?
Maria de Lourdes Mollo: O que inspira os pedidos de a autonomia do Banco Central é uma teoria dominante na economia, segundo a qual a política monetária é incapaz de estimular o crescimento de forma duradoura. A política monetária só conseguiria administrar a inflação ou o nível geral de preços. Conseguiria, no máximo, empurrar um pouco o crescimento, mas não a longo prazo.
Essa tese supõe que a moeda é neutra, ou seja, que a moeda não afeta a capacidade produtiva. Os defensores da autonomia não creem que reter a quantidade de moedas, por exemplo, ou aumentar a taxa de juros (que diminui a quantidade de moedas), sejam medidas que afetem de forma danosa a produção real e o emprego.
Sob a visão neoliberal, o Banco Cental deve ser independente para que não sofra pressões do governo – que são vistas como pressões eleitoreiras, que querem estimular o emprego transitoriamente. Se for independente, portanto, poderá perseguir apenas o controle de preços.
Nem todos os economistas compartilham dessas ideias.
Os heterodoxos acreditam no contrário: a política monetária pode, sim, afetar a economia real. Uma política monetária muito estrita, portanto, pode provocar desemprego de forma duradoura, com custo social elevado. A pressão pela redução da quantidade de moedas ou pela elevação da taxa de juros, acreditam, criam muitos problemas sociais.
Para os heterodoxos, o Banco Central autônomo vai se dedicar apenas ao controle dos preços, e pouco ao crescimento econômico e ao combate ao desemprego. Dessa forma, a autonomia do Banco Central pode prejudicar toda a política econômica do governo voltada para o crescimento.
Tudo isso depende de premissas diferentes, entre a ortodoxia liberal, que pede a autonomia do Banco Central, e a heterodoxia.
Qual o lugar do Estado nessa disputa?
Quando os governos são eleitos, têm determinados objetivos. Mas nenhum deles quer inflação. Nenhum governo, nem ortodoxo, nem heterodoxo, quer inflação. O que eles querem é poder estimular algumas coisas. Pode ser o emprego, o aumento da renda e o aumento da produção.
Se você dá autonomia ao Banco Central, o governo fica impedido de usar a política monetária conforme seus objetivos. O presidente da República pode ser liberal ou progressista, mas a operacionalização da política monetária dependerá do presidente do Banco Central, e ele não responde às propostas do governo.
Então, do ponto de vista político, a autonomia é absolutamente discutível, porque os governos não pensam da mesma maneira. Se um governo adota uma teoria que vê a política monetária como um instrumento para estimular o crescimento ou o emprego, ele não poderá usá-la para isso.
Nesse sentido, há uma observação verdadeira: a autonomia do Banco Central tira dos governos a possibilidade de utilizar um tipo de política, que é a política monetária, para os objetivos aos quais ele se propôs na eleição. Como há essa divergência teórica entre os economistas, os heterodoxos, que geralmente fundamentam a política dos governos mais progressistas, ficam numa camisa de força.
As medidas apresentadas no projeto em tramitação são agressivas?
São medidas que buscam tirar dos governos esse instrumento de política monetária. Mas a história já mostrou que isso não funciona sempre dessa maneira.
Por exemplo, o Banco Central mais independente do mundo, o banco alemão. Sempre que o presidente do Banco Central divergiu, a opinião do governo se impôs no final. Isso só mostra que a política monetária é importante, e de alguma maneira precisa ser operacionalizada pelo governo.
Na verdade, o que está em jogo é o papel do Estado.
As teorias liberais não consideram o Estado, do ponto de vista econômico, importante. Acham desnecessário, porque o mercado tende a se regular melhor, e até nocivo, porque os governos são vistos com esse viés inflacionário. Essa é a razão básica.
Para a heterodoxia, o Estado deve interferir na economia e garantir crescimento, de emprego e de desenvolvimento. Nesse sentido, é importante ter instrumentos para a política econômica, em particular, a política monetária.
A política que serve ao sistema financeiro e bancário nem sempre é a política que mais serve à população brasileira como um todo.
A autonomia do Banco Central favoreceria o mercado financeiro?
Pode vir a acontecer. É uma outra coisa problemática. A política que serve ao sistema financeiro e bancário nem sempre é a política que melhor serve à população brasileira. Nem sempre os objetivos são os mesmos que o dos governos eleitos. Podem ser, mas podem não ser.
Numa democracia, a política do Banco Central precisa estar ligada aos governos eleitos. A independência do Banco Central tira esse instrumento do Estado.
Nas visões heterodoxas, o Banco Central não é todo-poderoso, no sentido de conhecer tudo o que ocorre na economia, nem os detalhes do que vai acontecer ao longo do tempo. O Banco Central precisa, portanto, ter uma sintonia fina de saber onde e quando é necessário injetar dinheiro e créditos.
A autonomia, porém, quanto mais forte, mais regras fixas impõe, e isso impede essa operacionalização da própria política que foi traçada pelo governo eleito.
Em relação ao exterior, o Brasil está seguindo uma tendência ou indo na contramão?
A visão de autonomia do Banco Central é dominante no mundo, porque as teorias que sustentam o pensamento neoliberal são dominantes. Mas, recentemente, mesmo teóricos neoliberais estão percebendo que é preciso do Estado para estimular a economia. Em momentos de crise, as regras estritas da política monetária e a autonomia do Banco Central dificultam a implementação de políticas anticíclicas. Nesse momento de pandemia, vencer essa crise pede instrumentos do governo, amplos e fortes, e a política monetária pode ajudar.
A autonomia pode agravar os prejuízos econômicos da pandemia?
Pedir a autonomia do Banco Central significa restringir um instrumento de política econômica que precisa estar nas mãos dos governos para atingir os objetivos que ele propôs. Retirar esse instrumento é retirar dos governos esse poder. É retirar do governo a capacidade de interferir no processo de desenvolvimento.
Então, com certeza, pode dificultar a saída da crise, porque vai impedir que o governo use a política monetária para movimentos que nos façam sair da crise.
Fonte: CartaCapital