‘Probleminhas’, segundo Bolsonaro, aparecem em pesquisas de brasileiros e documentos americanos

‘Probleminhas’, segundo Bolsonaro, aparecem em pesquisas de brasileiros e documentos americanos
A DITADURA NÃO FOI BRANDA (FOTO: FLICKR)

Geral 31/03/2020 Escrito por: Romice Mota

Deputado de primeiro de mandato, o maranhense Márcio Jerry, do PCdoB, propôs uma lei para incluir no Código Penal o crime de apologia de ditadura. Pensou em Jair Bolsonaro, um apologista do chileno Augusto Pinochet, do paraguaio Alfredo Stroessner e dos cinco brasileiros que mandaram por aqui de 1964 a 1985. Para o presidente, o regime que completa 55 anos teve aí uns “probleminhas” e só.

Assassinato e tortura de adversários e de indígenas, corrupção e concentração de renda no 1% mais rico seriam apenas uns “probleminhas”? Este é o legado da ditadura inaugurada com um golpe em 1o de abril de 1964, uma data mais ao gosto dos historiadores, embora as Forças Armadas prefiram “comemorar” o 31 de março, para fugir do dia da mentira.

Às vésperas do golpe, a concentração de renda no 1% mais rico ia de 17% a 19% do PIB. Com a ditadura, “aumentou continuamente até 1971, quando atingiu 26%, maior percentual desde os anos 1940”. É o que diz a tese de doutorado em sociologia vencedora de a melhor do ramo em 2017. Chama-se “A Desigualdade Vista do Topo: a Concentração de Renda Entre os Ricos no Brasil, 1926-2013”.

Segundo seu autor, Pedro Herculano Guimarães Ferreira de Souza, o 1% mais rico do Brasil mordeu em média 23% no período que o pesquisador estudou. Seus níveis mais baixos foram vistos no período que mais inquietou politicamente as Forças Armadas, aquele compreendido entre o fim da fase autoritária de Getúlio Vargas (1945) e o governo do João Goulart, o alvo do golpe de 1964.

A explicação para a concentração de renda com os generais é simples, de acordo com Souza. A ditadura facilitou os lucros das empresas e dos ricos, por meio de isenções ou de reduções de impostos. A alíquota máxima de imposto da renda da pessoa física, por exemplo, caiu de 65% para 50%. Enquanto isso os trabalhadores sofreram arrocho salarial.

Segundo o Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG) do primeiro dos golpistas, marechal Castelo Branco (1964-1967), dissídios seriam homologados na Justiça somente se seguissem a regra oficial: pegava-se a média salarial dos dois anos anteriores, somava-se uma taxa de produtividade e mais metade da inflação prevista para o ano seguinte.

O salário mínimo caiu 30% e só se recuperou (pouco) a partir de 1974. A propósito: o vice de Bolsonaro, o general Hamilton Mourão, outro saudoso do golpe, acaba de dizer, em discurso na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), que o salário mínimo é alto demais no Brasil. Para o arrocho salarial na ditadura ser aceito sem choro, as greves foram proibidas.

Resultado: o crescimento recorde do PIB, o “milagre econômico” do fim dos anos 1960, início dos 1970, foi apropriado pelos ricos. A desigualdade subiu. Em 1973, o ditador Emílio Garrastazu Médici (1969-1973) fez uma viagem ao Nordeste e cunhou uma frase famosa: “A economia vai bem, mas o povo vai mal”.

Seu sucessor, Ernesto Geisel (1974-1979), baixou em 1975 um novo Plano Nacional de Desenvolvimento, para substituir o PAEG. Dizia o II PND: “É importante que as classes trabalhadora e média sejam amplamente atendidas no processo de expansão”.

Para levar adiante um projeto de nação em que os ricos se esbaldavam e os trabalhadores eram explorados, era necessário porrete. O relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), de dezembro de 2014, listou 434 mortos pela ditadura, pessoas que discordavam do rumo das coisas.

Houve ainda 8.350 indígenas mortos no período. Um número provavelmente subestimado, conforme a própria CNV, cujo relatório dedica um capítulo às “violações de direitos humanos dos povos indígenas”.

As mortes na ditadura não eram obra apenas da “tigrada”, aquela turma de baixo, soldados, cabos, sargentos, policiais. A cúpula do regime sabia, quer dizer, os próprios ditadores no Palácio do Planalto sabiam. É o que se vê em um documento norte-americano vindo a público em maio de 2018. Estava disponível desde 2015 no site do Departamento de Estado do Tio Sam e foi descoberto por um professor de Relações Internacionais da FGV, Matias Spektor.

Trata-se de um memorando de 11 de abril de 1974 mandado por William Colby, chefe da CIA, cuja sede Bolsonaro e Sérgio Moro acabam de visitar, a Henry Kissinger, cabeça da política externa dos Estados Unidos por décadas. Fazia menos de um mês da troca de Médici por Geisel, e Washington tentou saber se a caçada de Médici a adversários do regime seguiria. A resposta era sim, como diz o “assunto” do texto: “Decisão do presidente brasileiro, Ernesto Geisel, de continuar com as execuções sumárias de subversivos perigosos, sob certas condições”.

No relato da CIA, Geisel discutira o tema com três generais em 30 de março: João Baptista Figueiredo, que seria o próximo ditador e era então chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI), Milton Tavares, chefe do Centro de Informações do Exército, e Confúcio Danton de Paula Avelino, que assumiria o CIE. Era sábado. Geisel pediu para pensar no fim de semana.

Na segunda-feira, 1o de abril, aniversário de 10 anos do golpe, veio a decisão. Com a palavra, o memorando da CIA: “O presidente Geisel disse ao general Figueiredo que a política deveria continuar, mas que muito cuidado deveria ser tomado para assegurar que apenas subversivos perigosos fossem executados. O presidente e o general Figueiredo concordaram que quando o CIE prender uma pessoa que possa se enquadrar nessa categoria, o chefe da CIE consultará o general Figueiredo, cuja aprovação deve ser dada antes que a pessoa seja executada”.

O regime não era apenas assassino e concentrador de renda. Era corrupto também.

Via Carta Capital