A Revolta dos Malês
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Na madrugada de 25 de janeiro de 1835 aconteceu em Salvador uma rebelião organizada por muçulmanos, principalmente de origem iorubá, chamados nagôs na Bahia. A predominância nagô foi traduzida no nome dado ao movimento: Revolta dos Malês, pois o termo malê deriva de imale, que significa muçulmano em iorubá.
Participaram cerca de 600 combatentes, que deixaram a cidade em polvorosa por algumas horas. Durante o combate, mais de setenta rebeldes e cerca de uma dúzia de oponentes foram mortos. Vencidos, dezenas de africanos foram condenados a penas de açoite, prisão, degredo e morte. Não sabemos detalhes do que pretendiam os rebeldes, se vitoriosos. Certo era que a Bahia malê seria uma nação controlada pelos africanos, tendo à frente os muçulmanos. De toda maneira, não foi um levante sem direção, fruto do desespero, mas um movimento dirigido à tomada do poder.
Os malês foram os responsáveis por planejar e mobilizar os insurretos. Suas reuniões eram uma mistura de exercícios corânicos (leitura e escrita), rezas e conspiração. O próprio levante aconteceu no final do mês sagrado do Ramadã. Os malês foram às ruas com roupas islâmicas e amuletos protetores feitos de cópias de rezas, de passagens do Alcorão e outros escritos. Cientes de que constituíam minoria na comunidade africana, os malês não hesitaram em convidar não muçulmanos para o levante. Um outro elemento de mobilização entraria em ação: a identidade nagô. Quase 80% dos réus escravos em 1835 eram nagôs.
Os africanos interrogados se conheciam pelos nomes de suas terras, fossem nomes tradicionais ou muçulmanos. Um deles declarou só saber dos “nomes que usavam na sua terra e com que são conhecidos entre os outros”. Ajadi, Ajahi, Alê, Alade, Dada, Cubi, Gonso, Licutan, Ojou, Sanim. O nome podia ser elemento de afirmação da rebeldia, como se observa no que disse um escravo, o alufá malê e líder rebelde, cujo nome de escravizado era, ironicamente, Pacífico. Ao ser perguntado qual o seu nome africano, disse ser Bilal, ao que o juiz retorquiu ele mentia, pois sabia chamar-se Licutan. “Era verdade chamar-se Licutan”, o seu nome iorubá, “mas ele podia tomar o nome que quisesse”, repondeu o alufá. Bilal era um nome comum entre africanos muçulmanos, por ser nome do muezim negro de Maomé.
Na sua maioria, os réus responderam serem nagôs. Esse dado nos leva aos povos falantes do iorubá, que hoje vivem no sudoeste da Nigéria e no sudeste da República do Benim. Nos anos que antecederam o levante de 1835, essa região sofria conflitos generalizados. No poderoso reino de Oió, uma minoria dos habitantes tinha abraçado o Islã, se reunindo em aliança com haussás e fulanis na cidade de Ilorin para combater Oió. Vieram de lá os malês da Bahia, capturados em combate ou raptados e vendidos para os traficantes baianos que controlavam boa parte do comércio de gente no litoral.
Devido ao grande número de nagôs, o iorubá se transformou em língua franca dos africanos na Bahia. O cozinheiro escravizado Luiz, por exemplo, declarou ser “de nação calabar, porém só fala nagô”. Alguns já traziam da África essa habilidade, como José, que disse ser de nação jeje, mas ter sido “criado na terra de nagô”.
No entanto, ser nagô na Bahia não apagaria completamente memórias de pertencimento a grupos específicos na África. Embora a maioria dos interrogados respondesse ser apenas “nagô”, alguns declaram identidades mais precisas. O carregador de cadeira Joaquim de Mattos, por exemplo, respondeu ser de “nação nagô gexá”. Era ijexá, um grupo étnico no leste do território iorubá. A liberta Edum disse ser de “nação nagô-bá” e um outro africano interrogado disse ser ela apenas “bá”, significando naturais de Egba, um reino duramente conflagrado por guerras no início da década de 1830. O escravo nagô Antônio, doméstico e carregador de cadeira, resumiu bem a questão quando afirmou: “ainda que todos são nagôs, cada um tem sua terra”.
Quando presos de outras nações diziam que nada sabiam sobre os nagôs, e inclusive declaravam terem rixas com eles, podiam estar mentindo para salvar a pele, embora trabalhassem dentro de uma lógica da diferença ditada pela experiência anterior à chegada ao Brasil. Na pressa, podiam até se confundir, como o escravo Joaquim, que disse: “sua nação é nagô, aliás é mina; e que sabe a língua de nagô”. O liberto jeje José da Costa Rudá chegou a criar uma fábula de preferência afetiva, ao afirmar ser “avesso aos nagôs e auçás com os quais nunca quis contacto nem mesmo com pretas de tal nação, só sim com as de sua nação jeje”.
Além dos depoimentos dos revoltosos, os objetos malês confiscados pela polícia representavam uma parte importante da África na Bahia: anéis, tessubás, abadás, amuletos e outros escritos em língua árabe. A palavra escrita impressionou e assustou aos baianos livres. Ela dava testemunho de uma crença trazida da África e aqui reproduzida e ampliada, já que o Islã era uma religião em franca expansão entre os africanos na época do levante.
Ao deporem sobre o grau de envolvimento com o Islã, muitos réus se reportaram a suas experiências africanas com a religião que ocupava o banco dos réus. Alguns disseram abertamente ter recebido instrução islâmica na África, inclusive em escolas corânicas. O nagô Pedro, ao ser perguntado sobre um livro e vários manuscritos em árabe encontrados em seu poder, respondeu: “O livro continha rezas de sua terra e os papéis várias doutrinas cuja linguagem e sua ciência ele sabia antes de vir de sua terra”. Pompeo da Silva, nagô forro, com cerca de 30 anos de idade, “perguntado se ele sabia ou entendia das letras arábicas que usavam os nagôs, disse que tendo aprendido em sua terra pequenino agora quase nada se lembrava”. Antônio, escravo haussá, pescador, afirmou que conhecia o árabe, mas o usava apenas para escrever “orações segundo o cisma de sua terra”. Acrescentou que, “quando pequeno, em sua terra andava na escola”.
Alguns africanos foram mais vagos ao falar sobre sua educação muçulmana anterior à chegada à Bahia. Apesar de ser claramente um mestre muçulmano, Amaro, liberto haussá forro, declarou: “O dito caderno trata da religião de seu país, porque vira ali semelhante”. “Vira ali” – e assim alegava não ter intimidade com o Islã, nem na África nem na Bahia. Outros foram mais afirmativos. O nagô Gaspar, preso com um arsenal de escritos árabes, um tessubá (o rosário malê) e outros objetos de culto, disse ter sido ele o autor dos papéis, que aprendera o árabe em sua terra, leu trechos do que havia escrito, embora alegasse não saber traduzi-los para o português. Em todas essas declarações afloram as lembranças de uma educação muçulmana na África, às vezes de quando esses africanos eram crianças, mesmo no caso dos nagôs, que vinham de um lugar onde o Islã era adotado por uma minoria.
Outras tradições islâmicas atravessaram o Atlântico. O liberto Lobão Machado, quando preso, tinha diversos amuletos protetores em volta do pescoço. Pela quantidade de amuletos apreendidos pela polícia, muita gente se protegia desta forma. O escravo haussá Antônio aproveitava a educação muçulmana recebida em sua terra para escrever amuletos na Bahia, que ele vendia a africanos que buscavam se proteger de diversos males espirituais e terrenos.
As roupas usadas pelos rebeldes, os abadás, também foram usadas como prova de pertencimento à “sociedade malê”. Sobre esses abadás, assim falou o escravo Bento: “Na sua terra são ornadas com elas as gentes grandes, as quais se entendem rei e seus fidalgos”. Nesse depoimento registra-se a etiqueta do vestuário na hierarquia da antiga pátria, a distinguir os poderosos dos homens comuns.
Aquele tipo de indumentária seria, em 1835, representativo do status de chefe do movimento. As roupas, segundo o escravo Higino, “vêm de onde vêm panos da Costa, e que não se vendem pelas ruas, e que quem veste elas é gente grande quando vai à guerra”.
O uso do abadá pelos chefes malês tinha raízes na África, uma África que continuava a fazer sentido para os escravos na Bahia. Guerras passadas e revolta recente convergiam na memória dos depoentes. Para eles uma história africana se desdobrava, embora não se repetisse, em terras baianas.
* Professor da Universidade Federal da Bahia e autor de Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835 (3ª ed. Cia. das Letras, 2025).