Prisão para quem faz greve? Precisamos falar sobre isso
É doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP, juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região, professora de Direito e Processo do Trabalho da UFRGS e escritora.
Semana passada participei de uma aula, sobre a importância simbólica e concreta do Direito do Trabalho e da Justiça do Trabalho, seus limites e potencialidades. E, especialmente, sobre a necessidade de compreendermos que não são elas as responsáveis pelo atual estado de coisas. As instituições não sonegam direitos, nem reforçam desigualdades. Não promovem adoecimento e miséria. Sequer existem como Sujeito. São as pessoas que proferem decisões suprimindo direitos, que reproduzem preconceitos, que violentam, que desmatam.
Compreender isso não nos exime de analisar criticamente a atuação realizada por meio dessas instituições e mesmo sua existência. Nem deve nos conduzir à “fulanização” do debate. Não se trata disso. Trata-se de pensar a questão desde outro prisma, compreendendo que atitudes individuais são bem mais produtos de uma cultura que historicamente produz opressão, do que resultado de uma personalidade perversa. E que alterá-las, desnaturalizando a reprodução de uma ordem opressora e rejeitando o discurso que as esconde atrás de instituições boas ou más, é essencial para que haja mudanças.
A consequência imediata é perceber que alterar legislações ou retirar pessoas de postos de poder importa, sem dúvida, mas não será suficiente. Podemos revogar a “reforma” e trocar de presidente ou mesmo de senadores e deputados. Nada disso irá garantir alteração na estrutura que recalca e aprofunda injustiças. A história recente do nosso país é prenhe de exemplos disso. A mudança precisa ser muito mais profunda. Daí porque Paulo Freire insistia na educação como a principal forma de transformação social; porque movimentos de resistência propõem a comunalidade dos bens, o repensar da sexualidade, da família, da forma como interagimos com a natureza e fazemos circular os afetos.
Pois bem, enquanto eu ainda refletia sobre esse debate, recebi a notícia de uma decisão judicial que, diante do anúncio de deflagração de greve das trabalhadoras e trabalhadores do transporte público de São Luís, acolheu pedido formulado pelo município, para determinar que se mantivesse pelo menos 80% do efetivo atuando durante a paralisação. A decisão foi publicada dia 15 de fevereiro. A greve estava marcada para iniciar dia 16. Nesse dia, outro pedido foi formulado, indicando que a greve estava ocorrendo e que deveria ser declarada abusiva.
Em decisão proferida na mesma data, foi concedida nova tutela de urgência, reforçando a necessidade de manter 80% da frota em circulação. No dia 18, foi realizada audiência, que não resultou conciliação. Então, nova decisão foi proferida, decretando a prisão dos membros diretores do Sindicato dos Trabalhadores em Transportes Rodoviários. A decisão fundamenta-se nos artigos 330 (crime de desobediência); 262 (atentado contra a segurança de outro meio de transporte) e 265 (atentado contra a segurança de serviço de utilidade pública), todos do Código Penal.
A greve foi considerada, portanto, ato atentatório à segurança pública. No dia 19, há manifestação do Sindicato no processo, atualizando o juízo sobre a composição atual da direção, a fim de permitir a “correção” das ordens de prisão, o que foi feito. Em seguida, em nova manifestação, o Sindicato informa a suspensão da greve, no mesmo dia 19, e pede a revogação das referidas ordens, o que é feito em decisão proferida dia 20.
Temer a prisão e recuar não é algo que possa ser avaliado com superficialidade, especialmente sob uma lógica de exceção, em um país no qual ser preso pode significar concretamente a morte. Não se trata, portanto, de definir como certa ou errada a decisão judicial ou a atitude do Sindicato. Trata-se de perceber o que esse caso explicita. O quanto atos e omissões reforçam determinada ordem de coisas. E, ao reforçá-la, produzem uma realidade, na qual hoje no Brasil, por exemplo, o direito de greve concretamente não existe. Temos uma Constituição garantindo a greve como direito fundamental, ancorada em convenções internacionais ratificadas, mas nada disso é suficiente para que seja respeitada.
Se o discurso jurídico não consegue implicar uma alteração cultural na forma como os agentes do Estado, e mesmo os sindicalistas, agem diante de atos de violência contra a reivindicação coletiva, é porque a cultura da greve como “caso de polícia” ainda persiste. E existe porque a greve é a revelação do que não funciona. Explicita o metabolismo da sociedade capitalista, deixa suas entranhas à mostra e revela a violência do trabalho obrigatório. Apenas de forma coletiva é possível alterar as condições dessa troca e não é por outra razão que o Direito do Trabalho surge justamente impulsionado pela organização e pela reivindicação coletiva de melhores condições de vida e trabalho. Portanto, antes mesmo de ser regulada como direito, a greve é fato social. É a denúncia de que determinada situação está se tornando insuportável. Por isso, a reação contra a greve é, a um só tempo, a reação contra toda a forma de produção de racionalidade que conteste o modelo de organização social vigente.
No curioso caso da decretação da prisão de líderes sindicais ocorrida essa semana, há ainda um outro fator a ser considerado. Essa greve não estava apenas revelando o que não funciona em uma sociedade de trabalho obrigatório. Revelava também o que deve significar o discurso de que algumas atividades são prestadas através do Estado porque essenciais para que se viva com decência. Ora, a essencialidade do serviço público, longe de determinar restrições ao direito de resistir, deve constituir razão para redução de jornada, aumento de salário e garantia de condições adequadas de trabalho. Reconhecer a essencialidade de determinados serviços é assumir o compromisso de atuar para que eles não sejam prestados por pessoas em condição precarizada, em número insuficiente, com baixos salários. Serviço público de qualidade não é prestado por instituições, é realizado por pessoas.
Em São Luiz, como em Porto Alegre, a atividade de cobrador está sendo eliminada, o que implica acúmulo de função. E sequer reajuste de salário daria conta de compensar o desgaste e o risco que implica o fato de ter de dirigir e cobrar valores ao mesmo tempo. Um risco que não se limita a quem dirige. Em Porto Alegre, os ônibus que passaram a circular sem cobradores possuem um cartaz dizendo: “Atenção, pagamento de passagem em dinheiro diretamente com o motorista”. Não é preciso esforço para compreender o que isso implica, em relação ao risco de assalto e de acidentes no trânsito, em estresse e medo, para quem trabalha, para quem usa o transporte público e para toda a comunidade. Logo, a reivindicação por melhores condições de trabalho deve interessar à sociedade e aos agentes de Estado que reconhecem a importância do transporte público.
É sintomático que aqueles que defendem e até protagonizam a opressão arbitrária e violenta de quem luta pela efetividade de direitos e melhores condições de vida, não preconiza a mesma postura com relação a agentes públicos que, por exemplo, suprimem cargos, exigindo, pelo mesmo salário pago, o dobro de trabalho dos servidores que permanecem na ativa, muito embora se saiba o quanto esta situação atenta contra a segurança pública e a dignidade humana. É certo que um arbítrio não justifica o outro, pois qualquer tipo de arbítrio é condenável. O raciocínio serve, porém, para evidenciar que há uma razão estrutural para que apenas as arbitrariedades contra os mais pobres se naturalizem.
Fato é que afigura-se distópica uma ordem de prisão contra dirigentes sindicais, em uma realidade de superencarceramento como a nossa. Segregar, em prisões lotadas e condições desumanas, não tem servido para resolver problemas sociais graves. O Brasil é o terceiro país do mundo em número absoluto de pessoas presas. Nas cadeias superlotadas não estão empresários ou agentes públicos que sonegam direitos. A maioria é formada por pessoas pretas e pobres. De qualquer modo, o fato é que prender não resolve. Não é solução. Um tema que podemos aprofundar em outra oportunidade.
O que importa aqui ressaltar é que determinar a prisão de quem está reivindicando direitos sob a égide de uma Constituição que os garante como fundamento do Estado, em uma realidade na qual a prisão já se mostrou alternativa falha, é apostar no caos. E se a intenção for apenas a de ameaçar, para com isso aniquilar a greve, algo que no caso em exame efetivamente ocorreu, então é ainda pior, pois estamos lidando com a lógica do uso arbitrário da força violenta do Estado para impedir o exercício de direitos sociais.
Precisamos ressignificar nossa compreensão de serviço público, seja aquele prestado pelos agentes de Estado quando atuam na jurisdição, seja de quem o faz lutando por melhores condições de existência. Se o que é público nos implica, interessa e compromete, o primeiro passo consiste em desnaturalizar a opressão disfarçada sob o discurso da lei e da ordem e tão cuidadosamente direcionada contra determinados corpos e grupos sociais.
É urgente que esta violência seja explicitada e combatida. Só assim aprimoraremos concretamente nossas instituições.