Vacina controlará pandemia sem pôr pessoas em risco, diz especialista
Por Andressa Schpallir Jornalista, é secretária de Comunicação PCdoB de Poços de Caldas (MG), para o portal Vermelho 19/01/2021
O médico e advogado Daniel A. Dourado, pesquisador do Cepedisa/USP e do Institut Droit et Santé da Universidade
O Brasil, enfim, iniciou nesta segunda-feira (18) o Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19. Atrás apenas dos Estados Unidos no ranking das nações com mais vítimas do novo coronavírus, o País poderá, agora, controlar aos poucos a pandemia, ao “imunizar as pessoas sem colocá-las em risco”. A opinião é do médico e advogado Daniel A. Dourado, pesquisador do Centro de Pesquisa em Direito Sanitário da Universidade de São Paulo (Cepedisa/USP) e do Institut Droit et Santé da Universidade de Paris.
Em entrevista por videoconferência ao Vermelho, Daniel elogia a decisão da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), que, no domingo (17), aprovou por unanimidade o uso emergencial de duas vacinas anti-Covid: a CoronaVac (produzida pelo Instituto Butantan, de São Paulo, em parceria com o laboratório chinês Sinovac) e a vacina desenvolvida em conjunto pela Universidade de Oxford e pelo laboratório AstraZeneca. Para o especialista, o “pessoal técnico” da Anvisa “conseguiu resistir e se posicionar”, mesmo diante da pressão negacionista do governo Jair Bolsonaro.
Segundo Daniel, a negligência da gestão bolsonarista foi decisiva para o elevado índice de casos e mortes por Covid-19 no Brasil. “Além de omissão, há um projeto deliberado do governo federal e de governadores alinhados de deixar as pessoas serem contaminadas, como que assumindo o risco de que vão morrer. É algo meio irracional”, denuncia.
Ainda assim, com o início da vacinação, seu prognóstico é otimista: “Em relação à segurança (das vacinas aprovadas pela Anvisa), não há diferença significativa. Todas são muito seguras”, afirma Daniel, que avaliza, especialmente, a Coronavac – a primeira vacina a ser aplicada no território nacional. “A logística de transporte e armazenamento é mais fácil. Para o Brasil, é uma vacina excelente.”
Confira trechos da entrevista.
Vermelho: A decisão da Anvisa de liberar duas vacinas contra a Covid-19, apesar das pressões políticas, é uma evidência da autonomia da agência?
Daniel: No começo, estavam todos muito preocupados com a interferência política na Anvisa. Para mim, está claro que essa tentativa de interferência existiu. Mas o pessoal técnico da Anvisa – que está lá há muito tempo – conseguiu resistir e se posicionar. Na votação de ontem (17), eles deram todos os recados nesse sentido, fizeram questão de se distanciar do Ministério da Saúde e falaram, repetidas vezes, que o tratamento precoce não existe.
Há três semanas, os servidores efetivos deram um sinal nesse sentido e publicaram uma carta aberta dizendo que não se curvariam às pressões. Então, me parece que os diretores bolsonaristas, direta ou indiretamente, tentaram influenciar, e os servidores não cederam. O governo tirou o pessoal de cima e colocou os militares – na Anvisa e também no Ministério da Saúde. Mas a base é de servidores de carreira, que trabalham direito. O governo ainda não conseguiu desmontar isso completamente.
Vermelho: O que o início da vacinação significa para o combate à pandemia no Brasil?
Daniel A. Dourado: As pessoas podem ficar imunes por dois meios: pegando a doença ou se vacinando. A diferença é que, com a vacinação, o risco é quase nulo – é a única medida que, de fato, tem o potencial de controlar a pandemia. Como não há tratamento específico ou precoce, a vacina é o que pode imunizar as pessoas sem colocá-las em risco. Sabemos, desde o início, que o controle dessa epidemia seria via vacina.
Ao menos 10% das pessoas que contraíram o vírus precisam de algum cuidado e internação. A mortalidade tem sido de 0,5%, chegando a 1% em algumas situações. Em Manaus (AM), com a falta de acesso a hospitais devido à saturação da rede (pública de saúde), a mortalidade é muito maior. Casos graves se acumulando, com pessoas não tendo para onde ir, também são causas de morte. A vacina é a única maneira de imunizar a população para que isso não aconteça.
Vermelho: Quando o Brasil poderá abdicar de medidas restritivas como o distanciamento social?
Daniel: Vai demorar bastante, muito por conta da omissão absurda do Ministério da Saúde. Um exemplo: o Covax Facility, consórcio internacional da OMS (Organização Mundial da Saúde), foi iniciado em abril. O governo brasileiro foi um dos últimos – talvez o último – a entrar, só aderindo no final de setembro.
O País também demorou muito para assumir a vacina como estratégia prioritária. É necessário que de 70 a 80% da população seja vacinada para termos segurança no controle da pandemia. A demanda é da ordem de 350 milhões de doses, no mínimo. Estamos muito longe disso. A autorização emergencial da Anvisa foi para 8 milhões de doses – é o início do início. A Fiocruz e o Butantan estimam conseguir produzir algo próximo de 1 milhão de doses por dia – mas no final do semestre.
Até isso acontecer, pode haver uma explosão de casos e a saturação da rede. Sem contar o risco de uma mutação no vírus que possa criar alguma resistência à vacina ou deixar a doença mais contagiosa. Para atendermos a todos, é preciso ter o controle da quantidade de casos novos e da disseminação do vírus. A vacina pode controlar isso, mas vai demorar.
Vermelho: Como a onda negacionista, encampada principalmente pelo presidente, pode prejudicar a vacinação no Brasil? Há o risco de uma baixa adesão?
Daniel: Seguramente esse risco existe. Na saúde pública, a informação é um mecanismo essencial. Há vários documentos da OMS e de entidades internacionais sobre isso. Muitas pessoas estão morrendo e, seguindo as orientações, o problema vai se resolver. Mas, se as autoridades sanitárias querem induzir um comportamento – para que as pessoas adotem certos hábitos e se vacinem –, a comunicação tem de ser clara e direta.
No Brasil, desde o começo da pandemia, não tivemos essa preocupação. Em todas as oportunidades que tem, o governo federal boicota, atrapalha de todas as formas, critica os governadores que tentam frear a pandemia. Bolsonaro tem influência sobre uma parcela grande da população. A rede bolsonarista tem meios eficazes de chegar às pessoas e dar uma mensagem contrária – de que, por exemplo, a vacina não presta.
Para piorar, os meios oficiais, como a Secom (Secretaria Especial de Comunicação Social) e o Ministério da Saúde não estão fazendo o que deveriam fazer, que é induzir as pessoas a se vacinarem, trabalhar pela vacina. Isso é crucial. A Saúde teve até uma postagem censurada no Twitter por disseminar informações erradas.
Vermelho: As vacinas disponíveis no mundo têm componentes diferentes. Há alguma mais segura ou mais eficiente?
Daniel: O que temos hoje são dados de eficácia, dados de comparação e estudo clínico em ambiente controlado. A eficácia não pode ser comparada diretamente entre as diversas vacinas – o desfecho medido é diferente. Dá para fazer conjecturas, mas não dá para dizer que tal vacina é a mais eficaz. Há uma plausibilidade biológica segundo a qual a eficácia das vacinas de RNA seja maior. Como elas têm um mecanismo que vai direto ao material genético, é esperado que tenham eficácia maior.
A eficiência é o que vamos analisar no mundo real. É preciso deixar claro que a vacina é tanto mais eficiente quanto mais ela chega às pessoas. Não adianta ter a vacina da Pfizer – que é vacina cara, precisa ter o freezer de -70° e demanda uma logística de difícil distribuição – se ela for aplicada numa quantidade pequena de pessoas. Tudo indica que ela é muito boa, mas não resolveria.
Em relação à segurança, não há diferença significativa. Todas são muito seguras. A segurança é testada nas primeiras fases (1 e 2) para ver se há efeitos colaterais graves. Temos milhões de pessoas vacinadas no mundo contra a Covid-19 – e os efeitos colaterais são quase nulos. Nas vacinas que vão começar agora no Brasil, o risco de ter qualquer reação é baixíssimo – geralmente é dor no músculo, eventualmente um quadro subfebril.
A Coronavac é uma vacina de vírus inativado, o que é bom – já temos mais experiência com esse tipo de vacina. A logística de transporte e armazenamento é mais fácil. Para o Brasil, é uma vacina excelente.
Vermelho: A constante politização da pandemia, com a falta do cumprimento de indicações sanitárias por parte do governo, é responsável pelo grande número de mortos no Brasil?
Daniel: Com certeza. Quem se dedica a estudar dados consegue antecipar em semanas os locais onde a situação estará mais complicada e que, pela curva, vai colapsar pelo número de leitos de hospitais disponíveis. Mas no Brasil, além de omissão, há um projeto deliberado do governo federal e de governadores alinhados de deixar as pessoas serem contaminadas, como que assumindo o risco de que vão morrer.
É algo meio irracional. No começo, alguns acharam que, havendo contaminação, se criaria a imunidade de rebanho. Suécia e Reino Unido fizeram isso, mas viram que era uma tragédia. Aqui, alguns continuam apostando nisso – com essa história de que a economia tem de voltar a girar. Mas ainda não há imunidade na população. Se a mortalidade for de 0,5% e o vírus contaminar todo mundo de uma vez, é o caos.