Dois anos de desgoverno: os efeitos da antipolítica
É Professor titular do departamento de Ciência Política da UFMG
Bolsonaro é o terceiro outsider da direita brasileira que chega à presidência nos últimos 60 anos. Jânio Quadros e Fernando Collor o antecederam. Os dois não completaram seus mandatos. Jair Bolsonaro possui uma diferença fundamental em relação aos outros dois que também se elegeram destacando a luta contra a corrupção e tentando traçar uma relação entre esquerda e corrupção no governo: o bolsonarismo tem traços maiores de movimento do que de forma de governo e o presidente tem atuado desde o início da pandemia na tentativa de acentuar o lado movimentalista do bolsonarismo, tal como assistimos na sua já notória ida a Praia Grande na manhã do dia 4 de janeiro para cumprimentar todos aqueles que furavam o isolamento social e não usavam máscara protetora.
Nessa breve avaliação dos dois anos de governo Bolsonaro, irei defender uma tese: o bolsonarismo é tanto um movimento quanto uma forma de governo; o presidente gosta mais da parte movimentalista do bolsonarismo, mas a sobrevivência do bolsonarismo será determinada pela sua capacidade de governar. Bolsonaro tornou-se presidente sem ter qualquer capacidade para exercer o cargo. Na verdade, o Bolsonarismo não surgiu como uma forma de governo e não faz parte da proposta do capitão tentar governar. A anticandidatura pífia à presidência da câmara em 2017 para a qual Bolsonaro recebeu quatro votos, a mudança constante de partidos e uma verborragia extremista pareciam garantir essa posição.
Como já tive oportunidade de explicar no livro Política e Antipolítica: A crise do Governo Bolsonaro (Todavia), dois eventos são centrais na transformação de Jair Bolsonaro em liderança política nacional e os dois ocorreram no início de 2016. No momento da condução coercitiva do ex-presidente Lula, Bolsonaro estava em frente à sede da polícia Federal e ali externou uma posição que se tornou famosa: “O PT deve ser afastado do convívio democrático e da liberdade”.
Mas foi no dia 17 de abril, dia da votação da autorização para o impeachment da ex-presidente Dilma, que Bolsonaro tornou-se líder inconteste da direita brasileira. O então deputado federal declarou o seu voto da seguinte forma: “Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, pelo Exército de Caxias, pelas Forças Armadas, pelo Brasil acima de tudo e por Deus acima de tudo, o meu voto é sim”. Com esse voto, Bolsonaro se habilitou como líder da direita brasileira que vinha se reorganizando desde 2015. O Bolsonarismo como movimento deslanchou a partir desse momento, mas ainda não havia se habilitado para se tornar uma proposta de governo.
O Bolsonarismo se transforma em proposta de governo a partir da interdição do ex-presidente Lula e do fracasso retumbante do candidato do PSDB Geraldo Alckmin nas eleições. Ali, membros da operação Lava Jato e forças do mercado conseguem o apoio incondicional da grande imprensa à operação de normalização política do Bolsonarismo e à aceitação do capitão reformado no mainstream da política. Jair M. Bolsonaro faz um movimento em direção à governabilidade por meio de uma operação de eficácia duvidosa que envolveu a aceitação de um conjunto de propostas de reforma econômica conduzida por um indivíduo que seria a mistura perfeita de autoritarismo e liberdade econômica, Paulo Guedes. A operação ainda envolveria alguns acenos a grupos conservadores dentro do sistema político, entre os quais, cabe destacar os Democratas que são contemplados com três ministérios, o da Casa Civil com Onix Lorenzonni, o da agricultura com Thereza Cristina Dias e o da Saúde com Luiz Eduardo Mandeta.
Dois pontos de tensão surgem de imediato com a proposta de semi-governabilidade acatada pelo capitão insurgente. O primeiro deles, é que o capitão precisa agradar à sua base movimentalista e, para isso, foi preciso tensionar membros do sistema político, expondo suas mazelas ligadas à corrupção e ao privilégio político. Bolsonaro escolheu Onix Lorenzonni para essa função, ora humilhando-o em público, ora atribuindo-lhe responsabilidades que não eram dele, como no caso do voo privado de avião do amigo dos filhos do capitão. O mesmo ocorreu com o ministro do turismo Álvaro Antônio e depois com Osmar Terra. Ou seja, Bolsonaro precisou mostrar, nos seus dois primeiros anos de governo, que ele compôs com um sistema político que ele controla e, se desejar, humilha. Assim, temos o primeiro elemento de tensão que não é bem com a governabilidade e sim com os políticos.
O segundo ponto de tensão é mais complicado e levou ao conflito com Sergio Moro e Luis Henrique Mandetta. Nesse caso, a questão central é que o bolsonarismo, como movimento, e os interesses do clã estão acima das políticas públicas. A falta de caráter e de clareza política de Sergio Moro torna difícil apontá-lo com alguém interessado em implantar políticas de segurança pública. Em diversos momentos na sua trajetória, ele realizou acordos por debaixo do pano em relação à operação Lava Jato e, ao que tudo indica, sempre teve um projeto político baseado no punitivismo, e não na segurança pública.
Ainda assim, em alguns momentos, Sérgio Moro teve arroubos de gestor e fez propostas na área de segurança pública que imediatamente encontraram oposição por parte do capitão porque se chocaram com os interesses da sua base movimentalista. A interferência, por motivos políticos, na Polícia Federal tornou insustentável a permanência do ministro porque significaria se engajar com o bolsonarismo, com o movimento que coloca os interesses do clã acima da governabilidade.
O bolsonarismo, como movimento, precisa contar com a complacência dos órgãos de segurança pública porque ele tensiona as instituições políticas no seu limite e, ao fazê-lo, frequentemente ultrapassa os limites da lei e se choca com o bolsonarismo como governo. Esse é um conflito ainda não resolvido pelo capitão ou pelo populismo de direita, tal como vemos no trumpismo na última semana. Ambas as propostas sinalizam para as suas bases a ultrapassagem de limites legais.
No entanto, o maior conflito dos dois anos de governo Bolsonaro – que também se insere no campo bolsonarismo como movimento versus bolsonarismo como governo – se deu na resposta à pandemia. A saúde foi uma área de composição entre o bolsonarismo e a governabilidade desde a posse do capitão até março de 2020. A nomeação de Luis Henrique Mandetta sinalizou uma composição entre esses objetivos: de um lado, Mandetta havia se destacado na luta contra o programa “Mais Médicos” na Câmara, se habilitando, portanto, entre as bases bolsonaristas.
De outro lado, ele representava uma agenda privada já que havia sido superintendente da Unimed e tinha até mesmo experiência no SUS durante sua gestão na secretaria de saúde de Campo Grande. O problema é que o bolsonarismo se incomodou com uma resposta baseada na governabilidade no início da pandemia e radicalizou sua posição de semi-governabilidade para antigovernabilidade, tal como a reunião ministerial do dia 22 de abril mostrou.
Se o presidente forçou uma radicalização da concepção movimentalista contra o isolamento e conseguiu estabilizar o seu governo a partir dela, ele corre perigos gravíssimos se tentar fazer o mesmo em relação a vacinação contra a Covid em 2021. Há uma diferença que pode eventualmente apontar para o fim do bolsonarismo. Explico. O isolamento social foi polêmico e produziu resultado diversos em diferentes países, de modo que ele não produz uma concepção de incompetência política absoluta.
A vacinação parece ter níveis muito superiores de consenso ao seu redor e tudo indica que apenas o governo Bolsonaro, entre os governos populistas de direita do mundo, se engajou em uma campanha anti-vacina contra a Covid. Por outro lado, as bases bolsonaristas são mais vocais contra a vacina do que contra o isolamento e isso deve mobilizar o capitão, uma vez que a vacinação é um ponto de honra para concepções antimodernas e para o fundamentalismo religioso desde o surgimento da Christian Science nos Estados Unidos no século 19 sendo uma das agendas centrais do movimento antipolítica e anticiência nas últimas décadas.
É nesse contexto que não constitui absolutamente nenhuma surpresa a oposição do capitão insurgente à vacina. No entanto, o que deve ser acrescentado à sua concepção antivacina e irá marcar 2021 é que ele está disposto a aprofundar a anti-governabilidade para conseguir que a vacinação não seja exitosa no Brasil. As primeiras escaramuças em relação a essa questão aconteceram na discussão sobre a aprovação emergencial de vacinas, mas vemos outras atitudes que podem ter repercussões ainda mais dramáticas como a ausência de uma política de compra de seringas e o pedido de assinatura de um termo de responsabilidade.
Todas essas questões parecem colocar o Brasil muitos meses atrás de outros países em relação à vacinação e provavelmente terão consequências econômicas e políticas dramáticas. Se de fato o retorno a uma normalidade no Brasil ocorrer meses depois dos demais países e o Brasil se tornar um pária internacional, estarão dadas as condições para o rompimento do pacto de semi-governabilidade ratificado entre o capitão e as forças do mercado. 2021 pode ser o ano do fim do pacto mais macabro celebrado pelas elites brasileiras nos últimos cem anos, o que não significará o fim do bolsonarismo como movimento.
Este veio para ficar e talvez a campanha antivacina signifique, para ele, tanto quanto o ataque ao Congresso significou para o trumpismo. Ambas as formas de populismo de direta retiram sua energia do movimento anti-institucional que elas produzem. Tudo indica que o bolsonarismo retira a sua energia da luta anticiência e antivacina e o presidente irá se engajar de cabeça nessa luta que pode separá-lo do mercado e até mesmo dos militares.
É nesse quadrado que não apenas o futuro do bolsonarismo, mas provavelmente o das instituições democráticas no Brasil será decidido. Ainda que o bolsonarismo seja derrotado politicamente – e essa chance existe –, ele continuará a existir como movimento e a tensionar a democracia brasileira nessa década que se inicia.