Fortalecer e defender a saúde pública no Brasil

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Por Fernando Dantas*

Normalmente, quando falamos em Saúde Pública, logo visualizamos o atendimento nos postos de saúde ou nos hospitais que acolhem os casos de urgência e emergência. Por osmose, é associado a uma assistência de saúde de péssima qualidade e sem resolutividade para os seus usuários, ocupando a pauta da grande imprensa, que insiste em mostrar as mazelas do Sistema Único de Saúde. Entretanto, o SUS é mais do que está incutido no senso-comum da população e o que é divulgado pela imprensa. Ele completa 25 anos de existência, é fruto do “Movimento Sanitário”, iniciado na década de 70, no contexto da luta contra Regime Militar, com o tema “Saúde e Democracia”, e se constitui em uma conquista da sociedade brasileira.

Recordando um pouco da história, o termo “Reforma Sanitária” foi utilizado em alusão à Reforma Sanitária Italiana, nos debates preparatórios para a 8ª Conferência, e tinha em seu bojo propostas de mudanças e transformações necessárias na área da saúde pública, que se consolidaram na VIII Conferência Nacional de Saúde (CNS), em 1986. Naquele momento, técnicos, gestores e a sociedade civil organizada propuseram um “modelo de proteção social com a garantia do direito à saúde integral” e, posteriormente, na Constituição Cidadã de 1988, no artigo 196, se consolidou no texto constitucional e democrático, reconhecendo a saúde como direito do cidadão e dever do Estado.

Como preconiza os artigos 196 a 200 da Constituição Federal brasileira, o SUS foi criado com a finalidade de universalização e democratização do direito à saúde para todo povo brasileiro, independente da sua condição social, com a disponibilização de serviços e ações de saúde financiada por recursos do orçamento da seguridade social e de outras fontes de receitas: União, Estados e municípios. Assim, o SUS inaugurava um novo conceito de saúde no país, resgatando para a cidadania os chamados “sem direitos à assistência à saúde”, acabando com a figura do indigente sanitário e garantindo a qualquer pessoa o atendimento em postos de saúde e hospitais, sejam eles públicos ou conveniados ao sistema, apenas com a apresentação do RG.

Mesmo com avanço conquistado na Constituição, já nos primeiros anos de vida, o SUS enfrentou forte oposição por parte da elite brasileira, representada pelas empresas na área de saúde (indústrias farmacêuticas, de equipamentos hospitalares, planos privados de saúde e hospitais privados), que sempre defenderam uma concepção mercadológica e hospitalocêntrica na saúde, tendo como objetivo principal obter lucros, em contraposição ao modelo preventivo que privilegiasse a “atenção primária”, semelhante ao que acontece em Cuba. Infelizmente, esse embate perdura até os dias de hoje, motivado pela ganância econômica em detrimento da saúde da população.

Além dos problemas no campo ideológico e econômico, o SUS ainda enfrentou um cenário de falta de estruturas (hospitais, postos de saúde e etc.) e um alto grau de adoecimento que penalizava a população mais pobre da sociedade. Problemas como os altos índices de mortalidade e epidemias e o sucateamento da rede pública hospitalar – herdados do período do Regime Militar e agravados nos anos 80 e 90, com o desmonte do Estado brasileiro, fruto da política neoliberal daquele período – levaram a precarização da assistência à saúde pública na baixa, média e alta complexidade.

A despeito das dificuldades, o SUS vem se fortalecendo e buscando cumprir seu propósito de ampliar o atendimento com eficácia para toda a população. Nesse sentido, a participação da sociedade civil organizada, por meio dos Conselhos de Saúde – nas três esferas federativas – é indispensável na construção dos Planos Plurianuais de Saúde (PPA) e na fiscalização às ações das gestões. É verdade que em alguns municípios, por falta de organização e atuação da sociedade civil organizada (sindicatos, associações e etc.), os Conselhos não têm conseguido qualificar sua composição, comprometendo sua autonomia e desempenho, ficando à mercê de gestões municipais descompromissadas com a saúde pública. No entanto, considerando o tamanho do Brasil e a particularidade política e social das 5.570 cidades do território nacional, os Conselhos vêm exercendo seu papel de Controle Social.

Hoje, podemos afirmar, mesmo com todos os problemas, que o SUS é o maior e mais completo sistema de saúde pública do mundo, que vai além dos atendimentos primários nos hospitais e postos de saúde para realização de consultas, exames, internação hospitalar e demais procedimentos. O Sistema desenvolve e executa programas de vacinação para toda a população nas mais diversas formas de prevenção contra doenças e infecções, programas específicos direcionados a seguimentos da sociedade relacionados às questão de gênero, etnia e sexo, a exemplo do “ Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher”, do “Programa Nacional de Controle de DST e AIDS”, do “Programa Nacional de Saúde Integral da População Negra”, entre outros. O Sistema também realiza 95% dos transplantes no Brasil, independente de o usuário ter plano de saúde privado ou não, e é responsável pelo SAMU (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência).

Outro importante serviço prestado pelo SUS é o Programa Saúde da Família (PSF), que tem como finalidade traçar a “Estratégia de Saúde da Família”, considerando a família e o ambiente onde as pessoas moram, que passam a ser objeto de atenção, compreendendo melhor o processo saúde/doença, com foco em prevenção e atenção básica e em oposição ao modelo predominantemente assistencialista e de mercado. Assim, o programa, através das Equipes Multiprofissionais e Agentes Comunitários, acompanha e efetiva ações de promoção da saúde, prevenção, recuperação, reabilitação de doenças e agravos a mais de 2.400 pessoas, que residem, preferencialmente, nos bairros mais pobres das cidades.

Muito tem sido feito, mas ainda estamos distantes de atingir o objetivo de proporcionar um atendimento adequado a toda população. Todavia, devemos reconhecer o SUS como um imprescindível instrumento de promoção a saúde pública e para consolida-lo há desafios, como financiamento e gestão. No que se refere ao financiamento, precisamos inicialmente ampliar o percentual para 10% das receitas correntes brutas da União para o setor, atingindo o mínimo necessário para operacionalização do sistema. Quanto ao problema da gestão, a solução é mais complicada. Passa pelo processo eleitoral, na medida em que escolhermos prefeitos e governadores comprometidos com a Saúde Pública.

Finalizo chamando atenção para a importância da participação da sociedade na defesa e valorização do SUS, e isso passa por conhecê-lo melhor. Não da forma negativa e tendenciosa que, normalmente, é veiculada pela grande imprensa, mas com uma visão positiva e crítica, apontando os erros e reconhecendo os grandes avanços que vem ocorrendo, principalmente na última década. Falo isso porque a população de um modo geral desconhece grande parte dos serviços prestados, que não se resumem apenas ao atendimento na baixa e alta complexidade (consultas, exames, cirurgias e etc.). É preciso dar visibilidade à conquista que o Sistema representa, principalmente para as camadas mais carentes da sociedade, como um instrumento de cidadania no âmbito do direito à saúde.

 *Fernando Dantas é graduado em História e conselheiro estadual de Saúde.