Volta às aulas não é solução para a vulnerabilidade social das crianças
Colunista da da RBA
A discussão sobre a volta às aulas tem se tornado passional e dificultado uma análise realista da situação nas diferentes cidades, que estão em estágios distintos da pandemia de covid-19. Enquanto os empresários da educação pressionam pela retomada das atividades, professores e especialistas em educação e saúde ponderam que o momento ainda não é adequado para isso. Em São Paulo, que suspendeu as aulas presenciais em 23 de março, a previsão de reiniciar as atividades presenciais é 7 de outubro. E os argumentos têm sido de que as crianças mais vulneráveis estão enfrentando sofrimento psicológico, violência doméstica e passando fome.
“As crianças que estão mais vulneráveis agora, por conta do fechamento das escolas, também vão ficar mais vulneráveis com uma reabertura malfeita. São elas que vão ficar mais doentes, são elas que vão levar o vírus para casa, são elas que têm uma situação mais precária do que as crianças de escola particular”, avaliou a jornalista especialista em saúde Mariana Varella, editora-chefe do Portal Drauzio Varella, em live organizada pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação para discutir a volta às aulas.
Mariana ressaltou que algumas das medidas mais importantes antes de uma eventual volta às aulas são quase inexistentes no Brasil: o rastreamento de contatos e a ampla testagem. São recomendações, por exemplo, do Centro de Controle de Doenças (CDC, na sigla em inglês), órgão dos Estados Unidos equivalente à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), no Brasil. Aliados a uma forte redução da transmissão do coronavírus, o que ainda não é o caso no país, esses parâmetros também são preconizados pela Fundação Osvaldo Cruz (FioCruz) para uma volta às aulas segura.
Alimentação e segurança
Uma das saídas para a questão da vulnerabilidade social das crianças seria utilizar a estrutura da educação para apoiar ações da assistência social. Além do desenvolvimento de políticas para auxiliar as crianças e suas famílias em meio à pandemia. Auxílio alimentação maior, oferta de equipamentos e acesso à internet para acompanhar as aulas, busca ativa de casos de violência doméstica e sexual seriam medidas que poderiam melhorar a situação sem necessariamente uma volta às aulas insegura.
No caso da alimentação, por exemplo, o secretário Municipal da Educação, Bruno Caetano, reiterou ontem (23) as críticas ao governo de Jair Bolsonaro e ao Ministério da Educação por não liberar os recursos da merenda escolar para ampliar o valor do auxílio alimentação. Só a capital paulista tem aproximadamente R$ 100 milhões parados que poderiam ser usados para apoiar a alimentação das famílias mais vulneráveis. Ou seja, não seria preciso que as crianças voltassem à escola para ter acesso à merenda, bastaria vontade política.
Falácias da volta às aulas
Outro argumento falacioso sobre a volta às aulas é que os pais das crianças precisam voltar a trabalhar ou procurar emprego. Pelas propostas apresentadas até agora, as crianças teriam aulas presenciais apenas um ou dois dias na semana. Ainda assim, em horário reduzido. Em São Paulo, apenas 30% das crianças poderão estar nas escolas em cada sala. Nos demais dias, estariam em casa, fazendo atividades online, sendo cuidados pelos pais ou outros parentes – o que aumenta o risco de as crianças levarem o vírus para casa e contaminarem seus familiares.
Outro problema, destacado pelo analista de dados Ananias Oliveira, pesquisador do projeto Rede Análise Covid-19, é que muitas escolas não têm estrutura para garantir as medidas de higiene na volta às aulas. “Não há como pensar a escola fora da pandemia. Não existe protocolo único em uma pandemia descontrolada. Já abriu bar? Um erro não elimina o outro. Erros são cumulativos. Em 16% das escolas no Brasil não tem pia, não tem nada. Outras 50% não têm esgoto. Voltar é açodamento, é perigoso. Precisamos abrir as escolas, mas abrir com segurança”, avaliou ele, também participando da live da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.
Documentos do Tribunal de Contas do Município de São Paulo mostram que as escolas públicas da cidade mais rica do país sofrem cotidianamente com falta de papel higiênico, sabão para lavar as mãos e papel toalha. Uma pesquisa conduzida pelo Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp) mostra que a situação não é diferente nas escolas da rede estadual.
Indicadores técnicos
A Fundação Osvaldo Cruz (FioCruz) divulgou, no início de setembro, um amplo documento técnico com contribuições para a volta às aulas no contexto da pandemia. Entre outros aspectos, destaca que é preciso que a transmissão do novo coronavírus esteja abaixo de um novo caso por dia para cada 100 mil habitantes. E que a taxa de contágio esteja em 0,5 ou menos – o que significa 50% menos novos casos em uma semana, na comparação com a semana anterior.
Além disso, indica que a taxa de ocupação de unidades de terapia intensiva para covid-19 deve ser de até 25%. Hoje, em São Paulo, que já tem data para a volta às aulas, nenhuma dessas condições está atendida em nenhuma das 22 regiões do estado. A FioCruz também sugere a ampla testagem e o rastreamento de contatos como fundamentais para a segurança do retorno das atividades presenciais. Bem como garantia de fornecimento de materiais de higiene para estudantes e trabalhadores da educação.
A fundação ressalta, ainda, que mais importante que apressar a volta às aulas é garantir políticas públicas para proteger estudantes e suas famílias. “Diante dos efeitos nocivos diretos e indiretos sobre a saúde da população escolar, o Estado brasileiro deve ser capaz de desenvolver políticas públicas específicas para enfrentar cada ponto de vulnerabilidade e risco sofridos por crianças e adolescentes, tais como segurança alimentar, saúde mental e proteção contra exposição a violências”, afirma a FioCruz.
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