Monitoramento indica ‘racismo à brasileira’ na cobertura da mídia
É editora da Gênero e Número
A pandemia de coronavírus já havia sido identificada no país há mais de um mês quando a Coalizão Negra por Direitos e outras instituições entraram na Justiça para que o Ministério da Saúde divulgasse os números da doença por raça e cor. Uma das faces do racismo brasileiro, a não divulgação destes dados por uma percepção equivocada de que não são relevantes para explicar o Brasil não é uma exclusividade de órgãos públicos. A prova disso está no relatório “Racismo, motor da violência”, publicado pela Rede de Observatórios da Segurança. A instituição analisou notícias relacionadas à segurança pública e à violência durante um ano em cinco estados e, dos 12.559 registros sobre os temas em jornais, sites, portais noticiosos, perfis de redes sociais e grupos de WhatsApp, apenas 50, isto é, 0,4%, referiam-se a racismo e/ou injúria racial.
O monitoramento, dirigido por pesquisadores dos cinco observatórios que formam a Rede, foi feito entre 1º de junho de 2019 e 31 de maio de 2020 em São Paulo, Bahia, Ceará, Pernambuco e Rio de Janeiro. Levando-se em conta que a população negra é a mais afetada por mortes violentas no Brasil – os negros são 75% dos mortos pela polícia e as mulheres negras são 61% das vítimas de feminicídio, segundo dados do 13º Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, de 2019 -, a falta de problematização das dinâmicas raciais nas coberturas jornalísticas chamou a atenção.
“O dado ‘não ter dado’ é muito importante por conta da forma como o racismo brasileiro se caracteriza. Diversos intelectuais pretos e pretas já estão há algumas décadas dizendo que o racismo à brasileira, para usar o termo da Lélia Gonzalez, é um racismo que se reproduz por não aparecer. Não é um racismo como nos Estados Unidos, onde as pessoas entendem claramente que o problema é racial. Então, era quase que óbvio que essa informação não apareceria tanto, porque não se tem a compreensão de que os problemas daqui, de que a violência do Estado daqui são raciais. A gente vive num país onde o racismo não é reconhecido”, explica o pesquisador da Rede de Observatório de Segurança Pedro Paulo da Silva.
Se as mídias não mobilizam a questão racial para entender a questão da violência, da segurança pública, se reproduz a narrativa. E essa narrativa acaba sendo um problema para pesquisas, para transformações possíveis, para a segurança pública, porque a população em geral não vai ter essa compreensão
— Pedro Paulo da Silva, pesquisador da Rede de Observatório de Segurança
No estudo, a cobertura da imprensa e o discurso nas mídias sociais e outros meios sobre ações da polícia também apresentam outro dado alarmante: dos 7.062 registros que envolvem policiamento, a expressão “negro” aparece só uma vez. As expressões “racismo”, “raça” e “racial” não foram citadas nem uma única vez. A morte do negro George Floyd por um policial branco em Minneapolis, nos Estados Unidos, no fim de maio, que gerou uma onda de protestos nos Estados Unidos e no mundo, levou essas expressões ao noticiário nacional mas, no geral, o quesito raça/cor é ignorado. Em outro dos dados destacados pelo relatório, das 1.348 menções à violência contra mulheres registradas no período, a cor da vítima não foi informada em 1.230 delas, mais de 91%.
Para Pedro Paulo da Silva, “as mídias daqui não têm o costume de mencionar a questão racial, ela não aparece nas narrativas hegemônicas do país”. Também pesquisadora e articuladora nacional da Rede de Observatórios da Segurança, Bruna Sotero reforça que, apesar de não encontrar a palavra “negro” nas notícias analisadas, as estatísticas oficiais de encarceramento e mortes indicam, sim, que a maior parte destas pessoas é negra:
“A proposta desse relatório é mostrar que (essas ocorrências) têm cor, sim, e não são uma coisa esporádica, uma coisa acidental, uma coincidência. É sistemático. A polícia é racista, e a ausência desses dados é o que a gente diz sobre o racismo brasileiro, um racismo velado. As pessoas nunca acham que são racistas, mas quando a gente vai ver as práticas, principalmente das instituições, são práticas racistas”.
Impacto a curto prazo
Para os pesquisadores, quando a questão racial não é mencionada nos jornais, nas mídias, esse silêncio ajuda a reproduzir uma narrativa em que o racismo não é problema. Por isso, Pedro Paulo da Silva faz o alerta: a interpretação de que só 0,4% (50) dos 12.559 eventos monitorados cita racismo e/ou injúria racial não é que eles não existem, mas simplesmente que não estão aparecendo nas mídias. E embora reconheça que mexer na estrutura educacional do país seja fundamental para mudar esta cultura, Silva acredita que evidenciar os dados sobre o tema pode ter um impacto a curto prazo.
“Os dados seriam uma forma mais rápida para conseguir pautar a discussão racial do país, porque quando a gente demonstra isso a partir de números, fica muito evidente. No curto prazo, as pessoas pretas como eu estão enfrentando a violência do Estado. A gente tem que evidenciar isso de uma forma clara. E as pessoas formam opinião a partir das mídias. Se as mídias não mobilizam a questão racial para entender a questão da violência, da segurança pública, se reproduz a narrativa. E essa narrativa acaba sendo um problema para pesquisas, para transformações possíveis, para a segurança pública, porque a população em geral não vai ter essa compreensão”, finaliza o pesquisador.
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