Cidades brasileiras e a covid-19
É professor titular da Escola Politécnica da USP
Temos acompanhado com muita preocupação as últimas notícias a respeito das flexibilizações em relação ao isolamento social que estão sendo adotadas no País e nas cidades brasileiras. As recomendações divulgadas pelos poderes públicos ora estão sendo acatadas pela população, ora são desobedecidas, pois cada indivíduo as interpreta conforme a sua consciência, a sua compreensão da situação e as suas possibilidades econômicas e sociais.
Cada um de nós está a cada momento tendo que avaliar o que seria o melhor para si, a sua família e também para os que estão em seu entorno e a sociedade, acompanhando as diretrizes locais, estaduais e federais e a evolução dos números nem sempre reais dos infectados e dos óbitos, que continuam subnotificados.
Neste cenário de indefinições em que não se sabe ao certo o que nos espera, cabem algumas reflexões que terão um impacto quando a pandemia arrefecer e quando nos pusermos a tarefa de atuar sobre as nossas cidades para que elas estejam melhor preparadas para enfrentar problemas semelhantes aos que estamos vivenciando no momento.
O artigo publicado como research article pelo jornal Urban Studies em 31 de março deste ano por Creighton Connolly, Roger Keil e S. Harris Ali, “Extended urbanisation and the spatialities of infectious disease: demographic change, infrastructures and governance”, contribui para o entendimento da presente situação, e lança algumas questões acerca da presente situação.
A primeira questão levantada pelo artigo, sustentada em algumas pesquisas já realizadas, é que existe uma relação entre as doenças que eclodiram recentemente e o crescimento da população nas diferentes regiões do planeta onde isso aconteceu. Muito provavelmente esta situação tem ocorrido nas cidades e particularmente nas suas chamadas áreas de urbanização estendida, ou seja, na ocupação de territórios rurais não ocupados anteriormente por atividades humanas. Isso foi observado nos surtos de ebola, Mers, Sars e covid-19.
A segunda questão está relacionada com o papel da infraestrutura como veículo de disseminação das doenças, incluindo aí as redes de transportes, as redes de água e coleta de esgotos, e os sistemas de coleta, tratamento e deposição de resíduos sólidos. Estas infraestruturas foram desenhadas e construídas para favorecer a logística necessária para a melhoria de nossas vidas, mas também representam canais por meio dos quais a disseminação de doenças se potencializa.
Finalmente há que se considerar a governança existente nas cidades que contemplam os seus sistemas de saúde, tanto a saúde preventiva como a curativa, e as diversas práticas que relacionam as políticas públicas com aspectos de higiene, salubridade e bem-estar. Cabe nesta questão questionar o quanto, no Brasil, as legislações urbanísticas, particularmente as leis municipais do Plano Diretor e do Zoneamento, levam em consideração esses aspectos. No entanto cabe lembrar que as epidemias/pandemias não obedecem aos limites territoriais das cidades e dos municípios e que portanto seria necessário envolver governos regionais, metropolitanos, estaduais e federais nessa governança.
Para além do artigo mencionado, à guisa de contribuição para o debate e na tão esperada pós-pandemia, cabe mencionar alguns aspectos a serem levados em consideração no desenho de políticas públicas no País.
Iniciamos mencionando a importância de termos eficientes sistemas de informação pública, transparentes, atualizados e ao mesmo tempo que preservem a privacidade dos cidadãos. Uma referência reconhecida mundialmente é o sistema existente na Índia, que registrou digitalmente mais de 1,2 bilhão de cidadãos em menos de uma década. Esse é um importante instrumento para a elaboração de políticas públicas inclusivas no Brasil, país heterogêneo, desigual e com tantos problemas a serem resolvidos, e que necessitaria ser implantado com urgência.
A seguir deve-se mencionar o papel da educação, do ensino e da pesquisa, que foram revelados de maneira única no País, nestes quatro meses de pandemia. Todos os envolvidos nesses processos foram obrigados a se engajar nesse movimento de viabilizar da melhor forma possível atividades a distância que fossem eficientes, com todas as dificuldades técnicas, econômicas e de conhecimento envolvidas.
A intensa mobilização identificou dificuldades, gargalos, limitações e oportunidades únicos. O conhecimento das dificuldades enfrentadas e dos ganhos obtidos poderá alavancar iniciativas que serão incorporadas aos novos processos educacionais em todos os níveis e também no desenvolvimento de pesquisas colaborativas com centros e laboratórios espalhados em vários países.
Do ponto de vista urbanístico stricto sensu, existe e continuará a existir uma grande dúvida no Brasil: o adensamento das cidades deverá continuar a ser incentivado como propõe o chamado urbanismo sustentável? Ou a pandemia nos trouxe a lição que devemos nos distanciar procurando ocupar discretamente os espaços das cidades? Para alimentar essa discussão, como exemplo, Singapura, Hong Kong e Seul não sofreram proporcionalmente mais com a covid-19 se compararmos com outras localidades, apesar de suas elevadas densidades populacionais, pois estabeleceram rígidas políticas de afastamento social e implantaram sistemas de monitoramento da expansão da contaminação de sua população.
No entanto, cabe registrar que densidades muito elevadas no País são observadas nas inúmeras favelas que, segundo o IBGE, abrigam 6% dos brasileiros, ou seja, algo como 12 milhões de habitantes, acrescidos dos moradores de loteamentos clandestinos, número difícil de ser contabilizado, mas que corresponde pelo menos ao dobro, ou seja, 24 milhões de pessoas. Esses ambientes urbanos são caracterizados por sua informalidade e pela precariedade de sua infraestrutura, notadamente abastecimento de água, coleta de esgotos e de drenagem. A existência dessas características de elevada densidade e de carência de infraestrutura facilita a disseminação da atual pandemia.
Sem dúvida a gestão de nossas cidades está sendo testada no seu extremo com a pandemia do coronavírus. A covid-19 é um grande desafio para elas, e as políticas adotadas de forma emergencial deverão ser avaliadas quando a sua disseminação arrefecer.
Estamos vivenciando uma severa crise sanitária, econômica e social e devemos estar atentos para que esta dura experiência nos sirva de lição e que consigamos melhorar os nossos mecanismos de planejamento e de gestão urbanos, pois, conforme os epidemiologistas, infelizmente existe uma grande probabilidade de que novas epidemias venham a ocorrer.
Temos acompanhado com muita preocupação as últimas notícias a respeito das flexibilizações em relação ao isolamento social que estão sendo adotadas no País e nas cidades brasileiras. As recomendações divulgadas pelos poderes públicos ora estão sendo acatadas pela população, ora são desobedecidas, pois cada indivíduo as interpreta conforme a sua consciência, a sua compreensão da situação e as suas possibilidades econômicas e sociais.
Cada um de nós está a cada momento tendo que avaliar o que seria o melhor para si, a sua família e também para os que estão em seu entorno e a sociedade, acompanhando as diretrizes locais, estaduais e federais e a evolução dos números nem sempre reais dos infectados e dos óbitos, que continuam subnotificados.
Neste cenário de indefinições em que não se sabe ao certo o que nos espera, cabem algumas reflexões que terão um impacto quando a pandemia arrefecer e quando nos pusermos a tarefa de atuar sobre as nossas cidades para que elas estejam melhor preparadas para enfrentar problemas semelhantes aos que estamos vivenciando no momento.
O artigo publicado como research article pelo jornal Urban Studies em 31 de março deste ano por Creighton Connolly, Roger Keil e S. Harris Ali, “Extended urbanisation and the spatialities of infectious disease: demographic change, infrastructures and governance”, contribui para o entendimento da presente situação, e lança algumas questões acerca da presente situação.
A primeira questão levantada pelo artigo, sustentada em algumas pesquisas já realizadas, é que existe uma relação entre as doenças que eclodiram recentemente e o crescimento da população nas diferentes regiões do planeta onde isso aconteceu. Muito provavelmente esta situação tem ocorrido nas cidades e particularmente nas suas chamadas áreas de urbanização estendida, ou seja, na ocupação de territórios rurais não ocupados anteriormente por atividades humanas. Isso foi observado nos surtos de ebola, Mers, Sars e covid-19.
A segunda questão está relacionada com o papel da infraestrutura como veículo de disseminação das doenças, incluindo aí as redes de transportes, as redes de água e coleta de esgotos, e os sistemas de coleta, tratamento e deposição de resíduos sólidos. Estas infraestruturas foram desenhadas e construídas para favorecer a logística necessária para a melhoria de nossas vidas, mas também representam canais por meio dos quais a disseminação de doenças se potencializa.
Finalmente há que se considerar a governança existente nas cidades que contemplam os seus sistemas de saúde, tanto a saúde preventiva como a curativa, e as diversas práticas que relacionam as políticas públicas com aspectos de higiene, salubridade e bem-estar. Cabe nesta questão questionar o quanto, no Brasil, as legislações urbanísticas, particularmente as leis municipais do Plano Diretor e do Zoneamento, levam em consideração esses aspectos. No entanto cabe lembrar que as epidemias/pandemias não obedecem aos limites territoriais das cidades e dos municípios e que portanto seria necessário envolver governos regionais, metropolitanos, estaduais e federais nessa governança.
Para além do artigo mencionado, à guisa de contribuição para o debate e na tão esperada pós-pandemia, cabe mencionar alguns aspectos a serem levados em consideração no desenho de políticas públicas no País.
Iniciamos mencionando a importância de termos eficientes sistemas de informação pública, transparentes, atualizados e ao mesmo tempo que preservem a privacidade dos cidadãos. Uma referência reconhecida mundialmente é o sistema existente na Índia, que registrou digitalmente mais de 1,2 bilhão de cidadãos em menos de uma década. Esse é um importante instrumento para a elaboração de políticas públicas inclusivas no Brasil, país heterogêneo, desigual e com tantos problemas a serem resolvidos, e que necessitaria ser implantado com urgência.
A seguir deve-se mencionar o papel da educação, do ensino e da pesquisa, que foram revelados de maneira única no País, nestes quatro meses de pandemia. Todos os envolvidos nesses processos foram obrigados a se engajar nesse movimento de viabilizar da melhor forma possível atividades a distância que fossem eficientes, com todas as dificuldades técnicas, econômicas e de conhecimento envolvidas.
A intensa mobilização identificou dificuldades, gargalos, limitações e oportunidades únicos. O conhecimento das dificuldades enfrentadas e dos ganhos obtidos poderá alavancar iniciativas que serão incorporadas aos novos processos educacionais em todos os níveis e também no desenvolvimento de pesquisas colaborativas com centros e laboratórios espalhados em vários países.
Do ponto de vista urbanístico stricto sensu, existe e continuará a existir uma grande dúvida no Brasil: o adensamento das cidades deverá continuar a ser incentivado como propõe o chamado urbanismo sustentável? Ou a pandemia nos trouxe a lição que devemos nos distanciar procurando ocupar discretamente os espaços das cidades? Para alimentar essa discussão, como exemplo, Singapura, Hong Kong e Seul não sofreram proporcionalmente mais com a covid-19 se compararmos com outras localidades, apesar de suas elevadas densidades populacionais, pois estabeleceram rígidas políticas de afastamento social e implantaram sistemas de monitoramento da expansão da contaminação de sua população.
No entanto, cabe registrar que densidades muito elevadas no País são observadas nas inúmeras favelas que, segundo o IBGE, abrigam 6% dos brasileiros, ou seja, algo como 12 milhões de habitantes, acrescidos dos moradores de loteamentos clandestinos, número difícil de ser contabilizado, mas que corresponde pelo menos ao dobro, ou seja, 24 milhões de pessoas. Esses ambientes urbanos são caracterizados por sua informalidade e pela precariedade de sua infraestrutura, notadamente abastecimento de água, coleta de esgotos e de drenagem. A existência dessas características de elevada densidade e de carência de infraestrutura facilita a disseminação da atual pandemia.
Sem dúvida a gestão de nossas cidades está sendo testada no seu extremo com a pandemia do coronavírus. A covid-19 é um grande desafio para elas, e as políticas adotadas de forma emergencial deverão ser avaliadas quando a sua disseminação arrefecer.
Estamos vivenciando uma severa crise sanitária, econômica e social e devemos estar atentos para que esta dura experiência nos sirva de lição e que consigamos melhorar os nossos mecanismos de planejamento e de gestão urbanos, pois, conforme os epidemiologistas, infelizmente existe uma grande probabilidade de que novas epidemias venham a ocorrer.
Via: Jornal da USP