30 anos da mobilização histórica dos comerciários de Salvador em 1987
Este autor não possui descrição
Por Walter Cândido do Monte Júnior*
Revisitando o panorama social, econômico e político de 1987, analisamos que nos dias atuais os trabalhadores enfrentam outras formas de opressão. Novos cenários apresentam batalhas que, precisam ser vencidas pela classe dos trabalhadores e trabalhadoras. Mas resgatar os anos 80, revisitar a memória, colabora para futuras analises sobre estes tempos, além de enfatizar a potencialidade dos trabalhadores na luta de classe que se renova, se transforma, mas se enriquece quando se relembra momentos de grandes lutas. Com tal objetivo abordo a mobilização dos comerciários na cidade do Salvador, da rede Paes Mendonça/Unimar, no ano de 1987, destacando como foram eles e elas que se levantaram e assim deram vida ao sindicato.
No processo de lutas de classe, uma estrutura que organiza e representa os trabalhadores, o sindicato. É possível que coexistam diferentes análises sobre a greve, em seus diferentes momentos e qual nesses o papel do sindicato, afinal, estamos tratando de uma greve que irrompe apenas dois anos e três dias após o fim da Ditadura Militar. O sindicato em pauta assim como muitos outros espalhados pelo país, sofreu intervenção. Era comum antes do golpe e posterior ao regime militar, ações concretas de greves espontâneas dos trabalhadores, associadas à ausência de ilegítimos dirigentes sindicais, onde neste caso, sendo comum a presença nas direções de sindicatos, denominados de pelego (pele de lã do carneiro) que não enfrentavam conflitos próprios das lutas de classe. O termo pelego seria uma metáfora para o lugar secundário do trabalhador na relação entre empregados e sindicato, já que sua direção estaria ‘montando no trabalhador’, servindo a seus interesses bem como dos patrões.
Com o fim da Ditadura Militar, os movimentos sociais puderam sem a “repressão legal”, atuar nas mais diversas bandeiras de lutas sociais, e nesse cenário, especificamente na Bahia, houve em 1987 a eclosão de diversas greves simultâneas e, de distintas categorias, destacando-se dentre as linhas reivindicatórias de todas frações de classe, a questão econômica, ou seja, a relação capital trabalho, o que se agravaria devido aos altos índices de inflação.
No cenário da greve haveria outro fator que pode ter deixado o foco na luta de classe obscurecido, trata-se das eleições para a diretoria sindical, que se encerrou no dia 15 de abril do mesmo ano. Segundo Ata sindical, existiam três dirigentes que desde 1972 estavam em postos de comando.
Em março de 1987 o DIEESE, (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômico), lança documento sobre o arrocho salarial, o mecanismo utilizado pelo governo (Sarney), para disparar o gatilho: Segundo a técnica Maria Lúcia Lopes desse órgão: “esse é um mecanismo de arrocho salarial, porque não repõe a inflação integral verificada”. Se refere também a “queda gradativa do poder aquisitivo dos trabalhadores”. Para melhor justificar tal perspectiva se apoia em dados: “como exemplo o mês de novembro, quando o DIEESE registrava índice inflacionário de 20,12% e o governo divulgava 13,87%, evitando o disparo do primeiro gatilho”. (TRIBUNA, p.5).
No dia 18 de março, os comerciários iniciaram paralizações de duas horas, das 12h às 14h, respectivamente nas lojas situadas nos bairros da Baixa dos Sapateiros, Rio Vermelho, Cabula e Nazaré, sendo que, no bairro de Nazaré atingiu as duas marcas da empresa, Paes Mendonça e Unimar. Nessa ação, os trabalhadores causaram enormes fila nos caixas, impossibilitaram os clientes de comprar e estipularam um prazo até o dia 30 do mesmo mês, para que a empresa viesse atender todas reivindicações, caso contrário, declarariam greve geral.
Os trabalhadores não aceitaram o acordo feito entre seu sindicato, (Sindicato dos Comerciários) e a Federação do Comércio de 54%, sendo que, segundo tal proposta ainda seria abatidos um desconto de 20% de reajuste antecipado pelo gatilho, e 10% de reajuste de abono, sendo o reajuste real de apenas 24%.
As manifestações seguiram pelo dia 19. Em 20 de março, a greve é decretada pelos trabalhadores em assembleia. Os comerciários afirmaram que a greve somente terminaria quando a empresa atendesse as reivindicações, tendo como uma das principais, o reajuste de 150% sobre o gatilho. Nota-se que trabalhadores de outras lojas exigiam outro reajuste, 200%. Segundo relato de um trabalhador: “todos os funcionários estão mobilizados e empenhados na formação de piquetes, caso alguém queira furar o movimento”. (TRIBUNA, p.1 Cidade).
Nos primeiros momentos, não havia organização, nem comissão que pudesse representar todos os funcionários da empresa. Sem a organização das massas pelo sindicato, contudo, os trabalhadores buscavam forçar a empresa a negociar com o sindicato, órgão oficial e que poderia assinar qualquer tipo de negociação e assim, deram ao sindicato o poder de conduzir a greve. Os comerciários se organizavam em seus locais de trabalho, nas assembleias ocorridas no estacionamento da loja Hiper Paes Mendonça (atual Hiper Bom Preço, situado na avenida Antônio Carlos Magalhães) e em assembleias no sindicato.
Esses espaços se tornaram importantes polos aglutinadores para a construção de uma pauta única, unificação da classe e organização das lutas. Afinal, constam nas fontes consultadas, relatos de discordâncias sobre pontos da greve, ainda que muito poucos.
O fechamento das lojas Paes Mendonça/Unimar trazia para os moradores de Salvador vários inconvenientes. Eram poucas as opções de rede de supermercados, eram de menor porte, dentre elas estavam as Casas da Banha, Superbox, Vasquez, e Olhe Preço.
No decorrer da greve foram mais de 100 trabalhadores demitidos, sendo marcada uma reunião com a diretoria da empresa e uma comissão dos trabalhadores sem haver qualquer avanço, já que o presidente e fundador da rede de supermercados, Mamede Paes Mendonça se encontrava no exterior.
No dia 21 de março, a rede Paes Mendonça S.A publica em jornais nota de esclarecimento. A empresa destaca que alguns funcionários estariam paralisados e, mesmo apontado ser alguns, admite que existe suspensão no funcionamento de lojas de sua rede. Afirma que o reajuste concedido foi acordado em Convenção Coletiva de Trabalho entre o sindicato dos trabalhadores e o patronal.
O movimento grevista crescia, trabalhadores das lojas, Cabula, São Caetano e Pau da Lima paralisaram. Como cita a fonte, os grevistas saiam “pacíficos, mais muito barulhentos e somente garantem voltar ao trabalho depois de atendidas as suas reivindicações”. Nesse cenário de grande batalha, duas centrais sindicais apoiaram a greve para disputarem espaço, ou seja, ampliar suas bases de representação, CUT e CGT.
Apesar de ter sido decretada no dia 20 a greve ainda não existia de forma concreta, pois não havia ocorrido o fechamento de todas as lojas. Mas no dia 21, a loja Paes Mendonça situada em Boa Vista de Brotas paralisou das 07:30 às 09:30 solicitando redução da jornada de trabalho de 48h para 42h semanais.
Segundo Wellington Aragão, da Editoria Geral: (Jornal da Bahia, p. 9).
O tipo de reivindicação dos funcionários mostra que há algo de errado com a política de recursos humanos da terceira maior empresa da região Nordeste do país, 11ª maior empresa privada nacional e a terceira maior rede de supermercados do país, abaixo somente do Pão de Açúcar e Cobal.
Wellington Aragão (1987) aponta outros pontos fundamentais de reivindicações:
Os funcionários do empresário Mamede Paes Mendonça estão fazendo reivindicações pré-capitalistas do tipo: respeito nas relações humanas, direito à fala; descanso durante a jornada de trabalho; e cumprimento das relações trabalhistas de menores de 18 anos. Pedidos comuns no início da Revolução Industrial e estranhas a um grupo econômico que, após monopolizar o abastecimento de alimentos do Estado da Bahia por muitos anos, constrói em São Paulo o maior supermercado da América Latina.
As análises de Wellington Aragão indicam que nos anos 80, os trabalhadores comerciários bem como outras frações de classe precisariam de grandes lutas para poder alcançar um patamar de conquistas, mesmo que fosse o básico. A evolução da consciência de luta de classe, ainda que não tenha sido assumida por todos os trabalhadores, pode fomentar, ascender noutros a ideia de liberdade, de uma vida melhor, o que somente poderia vir através de lutas.
Logo em uma empresa que tendia a crescer em um cenário econômico ruim e muito pior para os trabalhadores, já que a empresa apresentava no ano de 1985 uma apuração líquida de 60 bilhões de cruzeiros. A rede contava com 60 lojas apenas na Cidade do Salvador, tendo um contingente de 16 mil trabalhadores em todo Estado da Bahia. A empresa informou que a estimativa de clientes que deixaram de transitar em suas lojas no período de greve foi de trezentas e cinco mil pessoas por dia. A greve de março de 1987 foi a primeira durante os 36 anos de funcionamento da empresa, somando um prejuízo estimado em trinta e cinco milhões. Afirmando a empresa que somente voltaria a negociar no dia 01de abril. (Correio da Bahia, p. 5 Cidade).
Enquanto haviam lojas fechadas, outras paralisadas, parte dos comerciários se concentravam na loja matriz, situada no bairro do Comércio. A empresa recebeu por parte de José Augusto (representante da empresa) uma comissão de trabalhadores de diversas lojas, com suas reivindicações. Não sendo possível qualquer avanço nas negociações por conta da ausência de Mamede. Os comerciários não decidiram trabalhar e esperar até sua vinda do exterior. Afirmaram que a jornada de trabalho diária sempre ultrapassa as 8h, como determina a CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas), por exemplo na loja do Hiper, quando entravam para trabalhar às 15h, saindo apenas às 3h da madrugada. Reclamavam que não recebiam as horas extras e comparavam os reajustes concedidos pela empresa, considerando que estariam muito abaixo do aumento dos preços dos produtos, que chegava ao patamar dos 300%.
No dia 20 de março, às 13h os comerciários organizaram uma passeata que começou no Largo dos Mares e foi até a Praça Conde dos Arcos (Baixa dos Sapateiros). Solicitavam melhores condições de trabalho e pediam apoio da população. A greve, tomou grandes proporções causando maior instabilidade nas relações entre trabalhadores e patrões, bem como com à população da Cidade do Salvador. De tal forma que a DRT (atual Superintendência Regional do Trabalho), passou e ser o órgão intermediador das negociações.
Ocorreu uma reunião que teve início às 17:30 do dia 22 e se estendeu pela madrugada do dia 23, terminando segundo fonte, às 06:30 da manhã. Nessa reunião a empresa pontuou suas propostas oferecendo um reajuste de 100%. Também foi oferecida uma jornada de 44h semanais de trabalho, pagamento em dobro das horas extras trabalhadas nos dias de domingo e feriado e afirmou que não iria demitir trabalhadores que tivessem feito parte da greve. (Jornal da Bahia, 24 mar. p. 10).
De qualquer forma, ainda que fosse concedido o reajuste sugerido pelos trabalhadores, qualquer decisão teria que ser discutida com todos em uma nova assembleia geral, onde aprovariam ou não. A fonte aponta uma das táticas dos comerciários para fechar as lojas: “os funcionários saiam em grupos, entravam nos supermercados e tiravam de forma pacífica seus colegas”. Em seguida, já contando com o apoio desses se dirigiam a outras lojas até fecharem todas elas antes do meio dia. Posteriormente ao fechamento das lojas, iam caminhando e manifestando-se até a loja do Hiper da Avenida Antônio Carlos Magalhães a esperar notícias de seus colegas pós vinda da reunião na DRT. Houve uma presença de quase três mil trabalhadores, que decidiram pela continuidade da greve, solicitaram reajuste de 200%, estabilidade de emprego concedido a todos e por um período de um ano. (Jornal da Bahia, p. Cidade 9).
Em um movimento espontâneo, construído pelos próprios trabalhadores, nem mesmo as centrais sindicais, CUT (Central única dos Trabalhadores), e a CGT (Central Geral dos Trabalhadores) puderam tirar das mãos dos trabalhadores a liderança que já lhes pertencia. O posicionamento firme da greve sequer se abateu com a demissão de 110 trabalhadores (segundo os comerciários) e 92 (segundo dados da empresa). A disputa das centrais sindicais pelo movimento grevista, refletia também a ausência do sindicato na liderança de uma greve que tomou grandes proporções.
O diretor do Sindicato dos Comerciários, Reginaldo Oliveira, destaca sua opinião sobre a entidade: “se distanciou de suas bases”, e chama de “atrasado” o comportamento do sindicato. Contudo, o sindicato realizou assembleias, participou de reunião na DRT, marcou reunião com a empresa para o dia 30 de março e assembleia para o dia 31. O mecanismo de reajuste salarial dos comerciários se dava pela negociação coletiva. Se aplica analisando a inflação do mês de março de 1986 até o mês de fevereiro de 1987, somando um total de 62,59%, aplicando o índice de produtividade.
O desfecho dessa greve certamente possibilitou uma nova visão sobre o poder dos trabalhadores, colaborando para a formação de consciência de classe e fomentando outras lutas. A vitória abriu espaço para que outros comerciários também fizessem suas greves e se libertassem dos grilhões, da passividade e subserviência aos patrões. Outros grandes movimentos de greve ocorreram no ano de 1988 e posteriormente.
Ao meio dia do dia 23 de março, alguns trabalhadores estiveram presente nos mercados da Saúde, Nazaré e Baixa dos Sapateiros para poder impedir a abertura das lojas. Ocorreu às 09h uma assembleia no estacionamento do Hiper Paes Mendonça, onde seria passado todas informações decorrentes das negociações feitas nas longas 15h na DRT. Nem todos trabalhadores gostaram da proposta, como João, “na verdade ainda é muito pouco”, o resultado desta longa reunião, foi um acordo entre trabalhadores e dirigentes da rede de supermercados, sendo concedido um reajuste de 100%, incluindo 20% do gatilho e 10% no mês como abono, a partir do mês de março. Conquistaram as horas extras, almoço e redução da jornada de trabalho de 48h semanais para 44h. Quanto aos comerciários demitidos, ficaram de ser readmitidos, também não seria descontado em folha de pagamento os dias paralisados pela greve. Foi assegurado estabilidade de emprego no período de seis meses aos trabalhadores que fizeram parte da comissão e de dois meses para os demais. 20% de adicional noturno. Quanto ao plano de assistência médica, ficou acordado que deveria ser implementado até fevereiro de 1988, gratificação de 50% do salário mínimo a serem pagos na folha de dezembro. (Correio da Bahia, 24, mar. p. 6 Cidade).
Aos trabalhadores e trabalhadoras recai um novo ciclo histórico de grandes proporções, a luta pela manutenção dos direitos trabalhistas. Em um cenário difícil é necessário que os trabalhadores concentrem suas forças para barrar os avanços capitalistas.
* Walter Cândido do Monte Júnior é diretor de Formação Sindical do Sindicato dos Empregados no Comércio da Cidade do Salvador, Especialista em História da Bahia e professor de história em cursinho.