Golpe abre nova fase da luta política no Brasil
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José Reinaldo Carvalho *
Segue em marcha batida o golpe de Estado legislativo-judicial-midiático no Brasil. Em 17 de abril, sob condução autoritária e farsesca, a Câmara dos Deputados aprovou a admissibilidade do processo de impeachment contra a presidenta da República. Nos próximos dias, o Senado acolherá a decisão e, por maioria simples, autorizará a abertura do processo, tendo como resultado imediato o afastamento por até 180 dias da presidenta Dilma do posto para que foi eleita com 54 milhões de votos.
A decisão final, previsível, será tomada no Senado, convertido em Tribunal, sob a presidência do STF, dentro de alguns meses. O roteiro traçado e executado nas duas casas congressuais mostrou até agora a existência de um jogo de cartas marcadas e o exercício de um implacável poder da maioria constituída por partidos reacionários. Ali não valem a lógica, a racionalidade nem a verdade dos fatos.
É uma abominável contrafação de julgamento, protagonizada por políticos repugnantes. Um ritual usado para dar ares de constitucionalidade a algo que já está decidido. Um julgamento feito como expressão de um golpe, que não toma em consideração critérios jurídicos consistentes.
Nos últimos dias, mais um lance foi jogado na inominável trama golpista, visando ao futuro de médio prazo: o pedido da Procuradoria Geral da República para o STF investigar a presidenta Dilma Rousseff e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva por “obstrução da operação Lava Jato”. Investido de poderes de Torquemada, o procurador geral denuncia Lula como “chefe de organização criminosa” na operação do chamado “petrolão”.
O golpe em marcha não é circunstancial, fruto de algum fato fortuito, ou da exploração de debilidades e eventuais erros táticos do governo e dos partidos progressistas. Pensar assim seria o mesmo que atribuir a primeira derrota eleitoral de Lula, no longínquo 1989, à edição de TV do malsinado debate com o candidato que se tornaria vitorioso, Fernando Collor. Ou considerar que a inauguração do ciclo neoliberal-conservador a partir da eleição de Fernando Henrique Cardoso em 1994 teria sido fruto da judiciosa e hábil exploração publicitária do “vitorioso lançamento” do Plano Real. Seria também uma ingenuidade supor que o processo de impeachment foi motivado por uma reação pessoal do presidente da Câmara ao voto de deputados petistas na Comissão de Ética a favor da sua cassação.
Os acontecimentos casuais têm seu peso, mas não podem ser compreendidos senão no marco do contexto geral e objetivo, do desenvolvimento e desenlace das contradições políticas e sociais.
As classes dominantes brasileiras são infensas à democracia, ao progresso social, à divisão da propriedade, da renda, à justiça, à ascensão social dos trabalhadores e massas populares. Não aceitam reformas ou mudanças políticas e sociais que ponham em cheque os seus privilégios.
O mesmo se pode afirmar quanto ao posicionamento geopolítico da burguesia brasileira, que alterna a subordinação neocolonialista às potências imperialistas com um complexo de grande potência associada a esses mesmos potentados internacionais, ambas atitudes contrárias a um alinhamento progressista no concerto internacional e ao desempenho de um papel proativo em favor da paz, da democratização das relações internacionais e da integração soberana da América Latina. É fenômeno patente e consolidado que a classe dominante brasileira é também antipatriótica, reserva estratégica dos planos de hegemonia mundial das potências imperialistas. Seus próprios interesses não são os nacionais e se acomodam maleavelmente às estratégias imperiais.
Sempre foi assim, desde que se constituiu como classe nos séculos 18 e 19, época do escravismo colonial, traço transmitido por herança aos latifundiários capitalistas e à burguesia monopolista-financeira atual. E assim será, até que ocorra uma revolução política e social no país, que construa um novo poder, sob a direção das classes trabalhadoras e suas representações políticas.
Enquanto supunham que a eleição de Lula em 2002 abria apenas um pequeno hiato no desenvolvimento político do país e constatavam com cínica satisfação os compromissos e a moderação em voga como um fenômeno político com que se podia conviver no curto prazo, essas classes mantiveram-se em seu posto de observação ou em uma discreta prontidão. A rigor, isto durou dois anos, porquanto o escândalo do “mensalão” (2005) e todos os seus desdobramentos jurídicos e políticos, constituíram o marco miliário do golpe que se consuma agora.
O golpe em marcha revela uma grande convergência de forças neoliberais e conservadoras. Partidos de variado espectro, exceto os de esquerda, em conluio com setores do Ministério Público, do Supremo Tribunal Federal e da Polícia Federal, ao consumar o golpe de Estado, infligem uma contundente derrota às forças progressistas e de esquerda que nos últimos 13 anos governaram o país sob a liderança do Partido dos Trabalhadores (PT).
Os neoliberais e conservadores formaram durante os últimos 13 anos uma espécie de condomínio oposicionista, que tomou sua forma mais acabada no segundo turno da última eleição presidencial e na atual ofensiva golpista, cuja gênese vinha de eleições e embates anteriores.
Nada mais elucidativo quanto à natureza da aliança golpista e da essência política e ideológica das forças que a integram do que a plena convergência programática. A “ponte para o futuro” de Michel Temer e a plataforma de “princípios e valores”, que lhe foi entregue na última terça-feira (3) pelo senador Aécio Neves, do PSDB, são faces da mesma moeda.
Em seus aspectos essenciais, há também convergência com as genéricas formulações do ex-prefeito serrista de São Paulo, Gilberto Kassab, um contumaz reacionário, que nunca se desprendeu dos dogmas conservadores do seu partido de origem, o velho PFL, atual DEM.
Entre forças que sempre atuaram na centro-esquerda, houve também quem elaborasse arremedos de programas democráticos, com acentuado caráter de oposição à esquerda e ao governo da presidenta Dilma, destacando-se entre estes o PSB, hoje sob o controle de um grupo que já não tem nada a ver, salvo honrosas exceções individuais, com o Partido de Jamil Haddad e Miguel Arraes.
Quando a isso se agregam as plataformas claramente neoliberais do PPS e do Solidariedade, observa-se que programaticamente todas as forças golpistas estão combinadas quanto à natureza antidemocrática, antipopular, antioperária e de traição nacional do eventual governo pós-golpe.
As contradições, que não são poucas, referem-se exclusivamente a interesses fisiológicos menores, visando a tirar vantagens imediatas e ao embate eleitoral de 2018.
Há um denominador comum: as forças golpistas empalmam uma agenda de contrarreforma política, pela qual promoverão a regressão antidemocrática do Estado brasileiro; a liquidação de conquistas sociais; a abertura total ao capital financeiro internacional; o retorno das privatizações; a submissão aos ditames do capital monopolista, com o qual assumiram o compromisso de promover a derrogação de leis que hoje asseguram os direitos sociais e trabalhistas; o retrocesso civilizacional, assumindo os ditames dos cânones de igrejas pentecostalistas retrógradas, promovendo ataques a conquistas no âmbito da convivência social, dos direitos civis e dos direitos humanos.
Faz todo o sentido que o golpe que promove a derrocada do governo da presidenta Dilma logre o consenso do conjunto da burguesia monopolista-financeira, da grande indústria e dos grandes comerciantes, dos latifundiários, dos meios de comunicação, da classe média-alta e de tudo o que tenha o fétido odor, a grotesca aparência e a cretina essência da burguesia brasileira. Chama a atenção que todas as organizações patronais, dentre as quais se destacou a famigerada Fiesp, do estridente e caricato direitista Paulo Skaf, tenham publicado declarações formais e solenes a favor do golpe.
O golpe em marcha demonstra a inteira falência do sistema político brasileiro, a derradeira ruptura com a ordem democrática constitucional instaurada pela Constituinte de 1987-1988.
Independentemente do desfecho do ritual do impeachment no Senado, a luta política ingressa em nova etapa e se eleva a nível mais alto. Sem prejuízo da luta eleitoral e da ação institucional nos parlamentos e nos governos municipais e estaduais, emerge para o lugar primordial a luta política de massas, a organização popular, o fortalecimento das organizações dos movimentos populares e sindicais.
E – questão prioritária – entra na ordem do dia a construção da unidade das esquerdas e das forças progressistas, de que é embrião a Frente Brasil Popular, numa perspectiva ampla de unir todas as forças suscetíveis de serem unidas na defesa da democracia, do progresso social e da soberania nacional, em torno de um programa de resistência e luta que aponte tarefas imediatas e de médio e longo prazos, cujo escopo seja a realização de reformas estruturais democráticas e progressistas.
O empenho das forças de esquerda na realização desta tarefa será tanto maior quanto seja profunda a sua compreensão sobre por que ruiu a base de sustentação do governo. Será necessário soerguer um novo pacto político, uma frente progressista, e acumular forças para assegurar a hegemonia do campo democrático-popular e anti-imperialista. Desde o ângulo de análise e dos interesses dessas forças, é necessário formular uma estratégia e uma tática que escapem a qualquer tipo de adaptação à ordem neoliberal e conservadora.
As mutações observadas no comportamento do PMDB e outras forças de centro, e sua deserção de um projeto democrático e patriótico, não foram abruptas. Ocorreram ao longo de um processo político em que foram deixando de ser partidos progressistas. No caso do PMDB, é algo que se configura desde o fracasso do governo Sarney e da candidatura presidencial de Ulysses Guimarães, em 1989. Os fatos recentes acabaram por demonstrar que esse partido, sob a direção de Michel Temer, não tinha credenciais para desempenhar o papel de principal fiador da coalizão governamental no parlamento, nem muito menos para ocupar o estratégico posto da vice-presidência da República.
Com clareza de objetivos, convicções programáticas, pensamento estratégico e sentido do momento histórico, a esquerda vê a crise atual e as novas condições desfavoráveis como uma etapa da luta. A nitidez com que se mostra a divisão entre os campos antagônicos da luta política, não anula, ao contrário reforça, a necessidade de combinar a firmeza e a combatividade com amplitude e flexibilidade táticas, sem ilusões nem confusão quanto ao caráter e aos objetivos estratégicos dos diversos sujeitos políticos.
A criminalização da esquerda, a ferocidade com que buscam ilegalizar o PT e excluir outros setores da vida institucional, tornar o ex-presidente Lula inelegível, e submetê-lo, assim como a presidenta Dilma, a penas judiciais, inclusive a privação da liberdade, sinalizam o nível do ataque às forças progressistas. O que nos dá também a indicação das dimensões dos novos desafios.
A luta contra o golpe despertou a imensa consciência democrática e a capacidade de luta de milhões de brasileiros que aspiram à democracia, à justiça social e à soberania nacional, aos direitos humanos, à boa governança, à vida culta e a elevados padrões civilizacionais. Já tinha ocorrido o mesmo nos embates decisivos do segundo turno da eleição presidencial de 2014.
É uma energia acumulada cujo desenvolvimento terá uma dinâmica própria até se transformar na força motriz da realização das transformações de fundo inadiáveis, de sentido revolucionário, que está a exigir a sociedade brasileira.
* José Reinaldo Carvalho é jornalista, pós-graduado em Política e Relações Internacionais, e secretário de Política e Relações Internacionais do PCdoB.