Já tem Copa!

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Caio Botelho *

"A quem serve?", perguntava a mineira radicada na Bahia, Loreta Valadares¹, sempre que se via diante de uma situação difícil em meio à luta política. A quem serve esta ou aquela posição? Quem está do nosso lado e quem está no campo adversário?

Loreta, como boa revolucionária, sabia que as elites são capciosas e gostam de plantar armadilhas para a classe trabalhadora. Não poucas vezes disfarçam seus interesses escusos em palavras de ordem que, à primeira vista, podem parecer justas e comprometidas com um mundo melhor. Assim, muita gente boa cai no canto da sereia e acaba fazendo o jogo dos setores conservadores. É claro que também existem os que deturpam as bandeiras de luta do povo de forma consciente e oportunista - são as velhas correntes que sempre jogaram no campo da contrarrevolução e que devem ser desmascaradas.

Só que a história nos ensina que não existem atalhos para a construção de transformações mais profundas. O caminho a ser trilhado é longo, duro, cheio de desafios e mesmo de algumas derrotas pontuais. Mas necessário, sob pena de cairmos em desvios, muitas vezes sem ponto de retorno.

Por sua vez, o ex-treinador da seleção brasileira e do São Paulo, Telê Santana, quando via seu time cometer erros primários dentro do campo, soltava o bordão: "Voltemos aos fundamentos!". Referia-se aos fundamentos do futebol, é claro, mas a máxima também cai como uma luva para a luta política.

E os fundamentos da luta política - tão bem compreendidos por Loreta - nos ensinam que é preciso estudar com afinco a realidade em que vivemos. Buscar compreender os movimentos e as palavras de ordem muito além da superficialidade de certas análises afoitas que veem um estopim para a Revolução em qualquer manifestação com meia dúzia de pessoas. É necessário sempre identificar quais interesses de fundo estão em jogo.

O Brasil, como sabemos, é repleto de contradições. Somos um país desigual que ainda nega à maioria do povo direitos sociais básicos, como acesso à educação e saúde de qualidade. Avançamos na última década através do projeto liderado por Lula e Dilma, mas ainda estamos longe de abalar os alicerces da sociedade capitalista que alimenta toda essa injustiça e exploração.

Mas passar a defender a tese de que, por possuir contradições, o Brasil perde o direito de promover eventos como a Copa do Mundo de futebol ou as Olimpíadas, significa concluir que apenas um clube seleto de nações que, ao custo da espoliação de outros povos alcançaram um razoável grau de desenvolvimento, poderia sediar tais acontecimentos. Dizer que não vai ter Copa é o discurso dos sonhos das grandes potências, que não se conformam com o fato de países como África do Sul e Brasil entrarem na rota desses mega eventos.

Ou o líder sul-africano Nelson Mandela estava traindo seu povo e seus ideais quando, mesmo com a saúde já abalada, desfilou pelo gramado do estádio Soccer City na final da Copa do Mundo de 2010? Seria Mandela um agente da Fifa ou, com sua genialidade ímpar, teria compreendido o sentido histórico daquele momento?

Se não deve ter Copa no Brasil, então onde ela deveria ocorrer? Na Suécia?

As desigualdades sociais em nossas terras não começaram com a Copa e nempor ela serão extintas. São resultado de cinco séculos de um processo de formação que resultou em um povo espetacular, unido, vibrante e trabalhador, mas que também concentrou nas mãos de poucos as nossas riquezas. Tratam-se de distorções que não serão corrigidas da noite pro dia.

O certo é que houve uma grande campanha de desinformação no sentido de criar um sentimento anti-Copa. Ao contrário do que espalham certos setores, não é a Copa que retira recursos de áreas sociais. Apenas em 2014 o orçamento da educação é onze vezes superior ao destinado, via financiamento, aos estádios de futebol desde 2007. O da saúde, por sua vez, é quinze vezes maior.

Quer tratar da espoliação dos nossos recursos? Então vamos colocar na pauta os mais de R$ 1,1 trilhão desviados para o vergonhoso pagamento de juros da dívida pública desde 2009 ou os mais de R$ 200 bilhões em sonegação fiscal apenas na primeira metade de 2014. Perto de tais cifras, os cerca de R$ 7 bilhões emprestados pelo BNDES para a construção de estádios parece o troco do pãozinho que a gente compra na padaria da esquina.

Mas aos poucos vai falando mais alto o coração verde e amarelo do povo brasileiro. As ruas já começaram a ser enfeitadas e os grupos de amigos já estão combinando o lugar onde vão assistir aos jogos da Copa - especialmente os da seleção brasileira. Aquela confusão contagiante que só uma partida de futebol pode proporcionar vai se reproduzir em cada canto do país nas próximas semanas.

Não se faz luta popular combatendo aquilo que forma a identidade do povo. Não se faz luta popular sem o povo. E o bravo povo brasileiro vai continuar a ser irreverente, a torcer e comemorar cada gol da seleção brasileira, a curtir o carnaval e gostar de uma boa festa, e também vai continuar a lutar por um Brasil melhor como, aliás, sempre fez.

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¹Loreta Valadares (1943 / 2004) foi uma líder emancipacionista, poetiza e destacada militante na luta contra a ditadura militar e em defesa dos direitos humanos. Nos anos 80, foi professora do curso de Ciências Políticas da UFBA e uma das idealizadoras da Escola Nacional de Formação do PCdoB, compondo também seu corpo de professores e dando contribuições ao enriquecimento da teoria marxista. Dedicou a sua vida à luta contra as injustiças e desigualdades.

 

*Caio Botelho é membro do Comitê Estadual do PCdoB na Bahia.